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Apesar de tudo, continuar
DATA
25 Ago 2025
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AUTOR
Maria Inês Augusto
"O jardineiro relutante que atravessa esta exposição não é um herói triunfante, mas antes uma figura quase trágica — alguém condenado a persistir num labor cuja colheita poderá nunca ver. É, contudo, precisamente essa insistência obstinada que dá forma a uma esperança distinta: não uma esperança imediata e luminosa, mas uma força subterrânea, lenta, que se nutre mais do gesto do que do resultado."
Com curadoria de Sofia Lemos, Reluctant Gardener ocupa o espaço Fidelidade Arte como um convite a uma travessia sensorial e cogitativa, onde se reexaminam as relações que estabelecemos com a natureza e os diálogos que esta mantém com a cultura. Reunindo obras que exploram a passagem do tempo, a mostra constrói ambientes imersivos onde ecoam questões ecopolíticas prementes. Escultura, instalação, fotografia, vídeo e som coexistem num diálogo que se ergue e que contamina, como um jardim em constante mutação — simultaneamente cultivado e indomado.
A figura metafórica do Reluctant Gardener, ou, traduzido para português, jardineiro relutante, funciona como fio condutor: alguém que, entre hesitação e persistência, procura reconfigurar as narrativas das nossas origens, questiona os mundos que decidimos cultivar e as naturezas que optamos por preservar[1], mas também as que deixamos degradar ou desaparecer. Uma espécie de guardião que parece não agir por impulso, que resiste a impor uma única ordem possível ao mundo que cuida. Com uma relutância que é, afinal, um acto de resistência contra futuros já escritos.
Na exposição, parece instalar-se um compasso de espera — não como um intervalo vazio, mas como um terreno fértil onde é possível fazer germinar novas narrativas e esboçar futuros possíveis. É nesse intervalo que Lemos, através do conjunto de obras seleccionadas, ensaia novos modos de habitar e partilhar, de cultivar relações, de imaginar formas alternativas de convivência que desafiam padrões fixos e despertam diferentes consciências ambientais. Os ritmos que nos conduzem — germinação, declínio, regeneração — não são apenas metáforas dos ciclos naturais, mas lembranças vivas de que o tempo se mede tanto no visível como no imperceptível, naquilo que emerge à superfície e no que permanece latente. A mostra recusa a pressa e a linearidade, permitindo que múltiplas temporalidades e sensibilidades coexistam, como num jardim que cresce em direcções imprevisíveis. Ao convidar-nos a permanecer, a sentir o que nasce mas também o que se desfaz, lembra-nos que olhar para o que se perde é já um gesto de resistência.
Entramos na exposição a caminhar por entre o que parece destroços. Sob a sola dos sapatos, o som seco de conchas frágeis a estilhaçarem-se — um tapete de moluscos, um chão morto, memória mineral de um ecossistema outrora vivo (Muscle Memory (2,5 tonnes), 2021/25). Mais à frente, o ar muda: uma flor resiste em água (Sem título / Untitled, 2024), imagina-se o cheiro do que arde (How fire thinks, 2019), ecoa a lembrança de pássaros que voaram (It’s always somebody’s bones, 2024). Ramos floridos erguem-se como cenografias imóveis que parecem símbolos de resistência (Granada Granada (Magnolia, Granado), 2023), uma superfície devolve o reflexo (Days of Inertia, 2024), um objecto suspenso que vibra sem dar descanso (Tea Leaf Paradox, 2024). Circundamos o que é destruído e o que ainda resiste, movendo-nos por espaços de suspensão onde a percepção oscila entre o luto e o espanto, diante de elementos que condensam a tensão entre fragilidade e persistência.
Tudo isto cria um dispositivo filosófico que nos faz pensar o jardim não como um refúgio intacto, mas como território que sofre, um campo que se constrói não apesar da destruição, mas a partir dela. Matéria viva e ferida, corpo exposto a ventos e forças devastadoras que confundem as fronteiras entre morte e vida, fim e recomeço. Num exercício poético e político, Lemos cria uma linguagem que é, ao mesmo tempo, delicada e incisiva, íntima e colectiva. E, no cenário político, ambiental e socialmente fracturado[2]em que vivemos, relembra-nos que este jardim — e talvez todos os outros — oferecem-nos espaço para imaginar o nosso lugar no mundo, espaço para moldar o imaginário colectivo, aquilo que queremos preservar, tornando assim a exposição solo fértil para que ideologias conscientes possam criar raízes, para que possamos pensar o caminho que queremos traçar no futuro, ecologicamente e politicamente.
As obras de Álvaro Urbano, Ariel Schlesinger, Nina Canell e Rei Naito cruzam-se aqui como diferentes espécies num mesmo habitat conceptual. Urbano transforma a arquitectura através de uma espécie de cenografia de narrativas espaciais habitadas por memórias; Schlesinger revela tensões poéticas que se relacionam com destruição; Canell trabalha a matéria em constante mutação, explorando forças invisíveis e processos duracionais; Naito evoca o quase imperceptível, criando ambientes de contemplação profunda. Juntos cultivam paisagens simbólicas que parecem reunir restos arqueológicos de um futuro já consumido. Cada elemento não se limita a ilustrar ou espelhar a natureza. São fragmentos, recolhidos ou reinventados, que nos confrontam com a nossa própria relutância em assumir o papel de cuidadores persistentes. Cada obra parece germinar na seguinte, movendo-se entre impressões vagas, estados anímicos e intensidades operáticas, como o tempo do jardim. Em ciclos de vida e decomposição, revitalizando a nossa percepção dos ritmos e sincopações do mundo.
Sofia Lemos evoca, a propósito da exposição, a expressão “Portugal, um jardim à beira-mar plantado”[3] para lançar um olhar crítico, revelando as camadas de conformismo que permeiam os discursos coloniais portugueses e a passividade diante das marés crescentes do nacionalismo, tão evidentes nas recentes vitórias da extrema-direita no país. Essa reflexão conduz-nos a encarar Reluctant Gardener não como um refúgio para consolos imediatos ou respostas simples, mas como um convite a uma investigação profunda e crítica sobre a complexidade do presente. O jardineiro relutante que atravessa esta exposição não é um herói triunfante, mas antes uma figura quase trágica — alguém condenado a persistir num labor cuja colheita poderá nunca ver. É, contudo, precisamente essa insistência obstinada que dá forma a uma esperança distinta: não uma esperança imediata e luminosa, mas uma força subterrânea, lenta, que se nutre mais do gesto do que do resultado. Este jardineiro, como Sofia Lemos e cada visitante disposto a mergulhar neste percurso reflexivo, sabe que a regeneração da natureza — e, por extensão, da cultura e da sociedade — requer tempo, espaço e resiliência. Exige a coragem de recuar, de abdicar da imposição de ritmos acelerados e geometrias rígidas sobre o crescimento orgânico e imprevisível do mundo. Cuidar é também um acto de entrega e permissão, uma crença profunda de que, mesmo num mundo exausto e marcado por crises, permanece latente a possibilidade do inesperado, do milagre íntimo de uma renovação que nasce da paciência e da resistência. E, desta consciência, instalam-se perguntas essenciais: como se cuida de algo que parece perdido? Como se rega uma terra que não responde? Como se apaga o fogo que ateamos?
A resposta deve ser o gesto — repetido, sempre repetido — que converge, talvez, no próprio cuidado. Continuar a regar destroços, varrer cinzas, na esperança que alguma coisa regenere. É confiar que, mesmo no solo golpeado, há vida que resiste.
Reluctant Gardener é sobre memória, energia e possibilidades. Um lembrete de que cada estilhaço sob os nossos pés é um arquivo vivo — testemunho de um colapso, mas também, esperemos, prenúncio de regeneração, de uma oportunidade para fazer melhor.
Há raízes que aguardam apenas a humidade mínima para poderem despertar. Não deixemos que o calor do fogo as condene à esterilidade.
Esta exposição é o nono momento do ciclo Território – uma parceria entre a Fidelidade Arte e a Culturgest — e pode ser visitada até dia 5 de Setembro de 2025.
[1] Folha de sala, pág 4.
[2] Folha de sala, pág. 4

BIOGRAFIA
Maria Inês Augusto, 34 anos, é licenciada em História da Arte. Passou pelo Museu de Arte Contemporânea (MNAC) na área dos Serviços Educativos como estagiária e trabalhou, durante 9 anos, no Palácio do Correio Velho como avaliadora e catalogadora de obras de arte e coleccionismo. Participou na Pós-Graduação de Mercados de Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa como professora convidada durante várias edições e colaborou, em 2023 com a BoCA - Bienal de Artes Contemporâneas. Desenvolve, actualmente, um projecto de Art Advisory e curadoria, colabora com o Teatro do Vestido em assistência de produção e tem vindo a produzir diferentes tipos de texto.
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