Os objectos, minha amiga, não podemos magoá-los porque não podemos atingi‑los. [1]
Visitei a exposição acompanhada por Enguita, juntamente com um grupo de pessoas igualmente interessadas em escutá-la. Ao percorrer as salas, tornou-se evidente, para mim, que a sua proposta não assenta numa narrativa fechada ou em esquemas expositivos rígidos, estáticos e bem delimitados. O que se constrói em Experiências do Mundo é antes um espaço para a pergunta, para a hesitação. Um avanço e recuo num território onde discursos se cruzam sem hierarquias, sem a imposição de uma leitura única. Percorre-se um caminho de equilíbrio instável, contínuo, imprevisível, que coloca em crise as nossas percepções[2] e que nos lembra que o encontro é sempre possível — mas nunca definitivo.
Conforme avançamos, deparamo-nos com conjuntos de microcosmos poéticos[3] singulares, uns em constante movimento, outros transformados, em tensão, que desafiam o olhar através de materiais díspares e temporalidades desfasadas. Foi notório, nesse percurso partilhado, como cada um dos presentes viveu a exposição de forma particular, lembrando a pluralidade de respostas sensoriais e afectivas possíveis, as experiências infinitas como matéria viva.
Num gesto, simultaneamente ético e consciente, Enguita abre possibilidades e afirma a arte — e o mundo — como lugar de liberdade de presença e de compreensão, assumindo uma curadoria que evita narrativas fechadas. Torna-se também claro que o que pretende é levar-nos à reflexão, articulando, de alguma forma, discursos históricos e contemporâneos, sem cair em esquemas temáticos rígidos. Trata-se de um convite para que o mundo, e a arte que reflecte o mundo, seja experienciado como um fluxo complexo que se fragmenta e se reconstrói.
Partindo da frase de Mattia Denisse com que inauguro este texto, e da lógica de ser necessária uma espécie de posse para que seja possível a decifração de um objeto artístico, penso como Experiências do Mundo suspende a lógica habitual da interpretação como domínio e da obra como enigma a ser resolvido. Neste território curatorial, as obras, seleccionadas a partir de diversos acervos (como a Colecção de Arte Contemporânea do Estado, Ellipse e Teixeira de Freitas), parecem operar como pontos de intensidade — em diálogo, mas livres — sem se oferecerem ao domínio interpretativo. Não se oferecem à decifração imediata nem à posse simbólica. Em vez disso, convocam um tipo de relação mais implicada, uma escuta sensível que aceita a resistência das formas, a opacidade dos signos, a imprevisibilidade dos encontros.
A exposição propõe uma mudança de regime sensível, não se trata de compreender as obras num gesto conclusivo, mas de habitá-las de forma parcial, porosa — com o cuidado que se reserva ao que não se possui. Há um gesto político, uma recusa da instrumentalização da arte e da sua redução a um discurso, a uma narrativa. Ao deslocar a atenção do conteúdo para a relação com infinitas experiências possíveis, Enguita permite que o museu se torne espaço de fricção produtiva, onde não somos guiados por uma tese, mas por encontros — entre matéria e linguagem, entre corpos e gestos. Cada obra parece, aqui, propor-se como um lugar a habitar temporariamente — zonas de passagem, lugares de travessia, meios de inscrição do tempo, que se oferecem à captura de sentidos múltiplos, onde a implicação sensível, afectiva talvez até, substitui o gesto de apropriação pelo de presença. Há um reconhecimento da indeterminação, da pluralidade e da resistência dos modos de ver, sentir e processar, que contribui para que, neste campo relacional, não se represente o mundo, mas se manifeste a complexidade das suas experiências possíveis. As obras não se subordinam nem a um discurso prévio, nem a um modo único de tratar o mundo. Coexistem num regime de ressonância que reconhece a sua multiplicidade como condição da experiência contemporânea.
As palavras que parecem ecoar de Horácio Frutuoso impressas na parede e as de Mattia Denisse impressas no papel; o equilíbrio instável de Ann Veronica Janssens, que nos envolve em coloridas névoas atmosféricas, dissolvendo fronteiras físico-sensoriais (Blue, Red & Yellow, 2001) e de Mauro Cerqueira com o seu Prédio (2010), feito de cinco prateleiras de madeira assentes em copos de vinho que nos relembra a fragilidade da resistência; o exercício de criação-destruição de Mona Hatoum, com o gesto mecânico que sulca e alisa areia num movimento que nos parece eterno (+and– , 1994–2004) e Eija-Liisa Ahtila, com The Wind (2022), onde papéis voam e cadeiras tombam; a estabilidade prestes a ruir tratada nas obras de Fischli & Weiss e Ernesto Neto (Bloco, 2006); os Ventilators (1997) de Gabriel Orozcoem diálogo com os espelhos de Fernando Brito; os objectos de William Kentridge que se tornam vestígios de uma acção e os de Belén Uriel que se estendem e transformam e moldam… juntos tensionam a matéria, expandem o campo da experiência, fazem-nos pensá-la infinita, móvel, radicalmente livre.
Circundamos ambientes, mais ou menos abstractos, que se desdobram em diferentes linguagens, entramos em caixas que alteram a nossa percepção, sentimos que não nos podemos sentar, mas devíamos[4], lidamos com objectos deslocados do quotidiano, fora de escala, instáveis ou metamorfoseados…É como se nos fosse pedida uma participação aberta — imperfeita, fragmentária — na leitura das obras e do mundo, a sentir as suas instabilidades e a potência que existe precisamente naquilo que nos escapa.
A curadoria de Enguita, marcada por uma prática crítica, equitativa e comunitária, propõe, com este conjunto de obras que se entrelaçam num tecido conceptual e sensorial, que se estende pelas salas, corredores, escadarias e até espaços das exposições permanentes, um corpo coeso mas respirável, que nos relembra das possíveis infinitas formas de viver e de habitar o mundo.
Doze artistas nacionais e internacionais, juntos, desafiam e desestabilizam categorias fixas, propõem uma viagem crítica através da arte e da sua capacidade reveladora e poética, lembrando-nos a constante — e necessária — transformação na forma de pensar o mundo.
A exposição pode ser visitada no MAC/CCB até dia 26 de Outubro de 2025.
[1] In Raccord, projecto editorial de Mattia Denisse que acompanha a exposição, pág. 3.
[2] Folha de sala.
[3] Folha de sala.
[4] Referência ao texto Raccord de Mattia Denisse sobre a obra de Mona Hatoum “Sentia que não podia sentar-se. Sentia que devia sentar-se” (pág. 4).