article
Amadora-3, de Diogo Brito
DATA
25 Mai 2021
PARTILHAR
AUTOR
José Pardal Pina
Em Diário de um Mau Ano, J. M. Coetzee escrevia algo como “não nascemos fora de um Estado”. Ou algo parecido. Quando nascemos, é-nos atribuído um número, uma morada, um nome, uma nacionalidade, uma cédula. Sem que escolhamos, é-nos forçado, logo à nascença, um Estado,…

Em Diário de um Mau Ano, J. M. Coetzee escrevia algo como “não nascemos fora de um Estado”. Ou algo parecido.

Quando nascemos, é-nos atribuído um número, uma morada, um nome, uma nacionalidade, uma cédula. Sem que escolhamos, é-nos forçado, logo à nascença, um Estado, um sistema, uma ficção, que fica latente e adormecida até à idade adulta e, a partir daí, se espera que a performatizemos em atos, pensamentos e omissões. Do voto eleitoral ao IRS, dos censos à doença, é o Estado, sempre presente – Deus Ex-Machina, ad nauseam, ad finem, ad mortem –, servido por uma máquina burocrática kafkiana – o tal sistema.

E kafkiana, aqui, usa com toda a propriedade: o jovem adulto cresce para se tornar no protagonista de O Processo. Até então é embalado pelo sistema, nutrido, amado, para depois ser violentado com guichés, formulários, repartições administrativas várias, créditos, documentos, burocracias, muitas burocracias, mais burocracias.

A vida adulta torna-se um teatro, uma performance – sem guião, sem texto nem contexto, sem preparação, porque a escola é uma aprendizagem abstrata e a faculdade um problema teórico.

Amadora-3, de Diogo Brito, é um relato hilariante e delirante do embate do artista com essa máquina do Estado, com o inefável sistema. Inclassificável, inqualificável, o artista é um problema para o sistema. A sua produção não é objetiva, regular, e muito menos regulada e regulamentada. O que dele resulta para a sociedade é inútil. E a obra de arte é qualquer coisa que existe no domínio da incerteza e da dúvida.

Dito isto, só aproximações são possíveis, nunca exatas e sempre sujeitas a eventuais desvios incomputáveis.

Sentado na cadeira das repartições públicas de finanças, o que é, quem é o artista? Como se pode ele definir e como pode ele definir a sua prática? É artista, é certo, mas cada tipo de artista? Porque para tipo de artista há um código. Artista de circo? Do espetáculo? Ou “Outros artistas”: CAE 2015? É que o artista contemporâneo, multidisciplinar por natureza, é tudo o que quiser ser: pintor, escultor, ator, escritor, bordador, até palhaço ou, se preferir, embora improvável, toureiro.

E é justamente nestas incompreensões risíveis, nestes momentos caricatos de assumir perante a máquina uma farsa, que Amadora-3 acontece – a saber, a morada das Finanças (essa entidade monolítica) onde o artista abriu atividade e, portanto, deu início à sua ficção.

Mas Brito compromete a narrativa, sonega-a aos cofres e gavetas do sistema burocrático e escreve uma outra, subversiva, à sua vontade, na qual zomba das normas instituídas, das tais expectativas, e da própria máquina que, confrontada com a obra do artista, fica sem saber que fazer, esperar ou processar.

Brito apresenta-se nas finanças como quem se apresenta numa piscina: em fato de banho, com touca, óculos de natação e toalha. Entretanto, a funcionária ingressa-o na chamada vida adulta, do contribuinte, para depois o mergulhar em águas azul-turquesa, sem destino, navegando apenas ao sabor da maré. É uma prova de esforço físico e mental. Mas é também uma pantomina.

A exposição é, deste modo, um ensaio sobre a atividade artística, sobre a realidade social, política e económica do artista, cuja representação é tão frágil que se torna incapaz de se impor ao leviatã e reclamar, para si, uma moratória para a desformatação, a indefinição ou a existência fora de uma lógica taxonómica, sistematizada e programada. Na impossibilidade da mudança, resta gozar e brincar com o instituído, na esperança de criar um nexo suficientemente plausível e agradável para se existir lucidamente e, agora, fora da ficção.

O espectador vê em Amadora-3 o que quiser ver: um grito de revolta, uma romantização juvenil do espírito de mudança, um palco para a performance da vida, do quotidiano, uma anedota, um exercício plástico e experimental, um recreio, um ritual de iniciação, uma celebração, ou tudo ao mesmo tempo. Tal como o artista, tem a sua vida por diante e por decidir. Ou não. Afinal, quem tem poder sobre quem? Que escolhas tem realmente o artista, num sistema tão complexo quanto primário, tão liberal quanto totalitário, tão aberto quanto castrador, tão humano quanto inflexível?

Amadora-3, de Diogo Brito, com a curadoria de Filipa Nunes, é até 10 de junho na Rua das Gaivotas 6. E o IRS até 30 de junho.

BIOGRAFIA
José Pardal Pina é Editor Adjunto da Umbigo desde 2018. Formação: Mestrado Integrado em Arquitetura pelo Instituto Superior Técnico, Universidade de Lisboa; Pós-graduação em Curadoria de Arte pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa. Curador dos projetos Diálogos (2018-2024) e Paisagens (2025-) na Umbigo.
PUBLICIDADE
Anterior
article
Situação 21: Histórias com amanhã – uma cartografia solidária da relevância das galerias do Porto
24 Mai 2021
Situação 21: Histórias com amanhã – uma cartografia solidária da relevância das galerias do Porto
Por Ana Martins
Próximo
article
Open Call: Poster Mostra — até 3 de junho!
26 Mai 2021
Open Call: Poster Mostra — até 3 de junho!
Por Umbigo