article
Jardim das Artes e das Letras, em Viseu
DATA
16 Set 2025
PARTILHAR
AUTOR
José Pardal Pina
"A ambição do JAL tem um propósito de base muito preciso e regulado, relacionado com a formação de públicos e a promoção da cultura como ponto fundamental na aprendizagem ao longo da vida."
Começa assim:
“1
A criança passeia pelo campo. Pára diante de um portão entreaberto. É o portão de uma grande quinta. A criança entra. Lá dentro está um cão enorme.” (Hatherly, 2025: 15)
Porque tudo, de facto, começa assim: como uma criança diante do grande espanto.
E esse espanto tem árvores e tem som; tem vento e folhas queimadas pelo sol.
Na clareira aberta pelas figueiras e os carvalhos, os loureiros e tílias…
(Havia tílias? Não me recordo do seu cheiro adocicado e enjoativo, mas numa mata há sempre uma ou duas tílias para as abelhas e as tisanas.)
… o devaneio é possível quando o sol se deita e as noites de verão se afiguram um deleite para um dia de calor e sol intensos.
Nesse lugar aberto pelas árvores há um palco. Tó Trips ensaia uns acordes com as guitarras, ajusta o som, tensiona mais ou menos as cordas do instrumento, bate levemente no microfone. Está vagamente distante; nós, sentadas nos bancos de madeira, falamos sobre a vida, com arranjos florais de rosmaninho, abóboras, peras, ramos e folhas de figueira, conchas madrepérola de ostras comidas, a zelarem pelo bom convívio.
Estamos em Viseu, na Mata do Serrado, mas as músicas de Tó Trips recordam Lisboa, com os seus cais de cacilheiros, as ruas sujas de Alfama ou do Bairro Alto, o cheiro a gasóleo queimado da Rua do Alecrim, o bater tímido das ondas do Tejo. Não há gaivotas nem elétricos e, no entanto, vemo-los aqui, tão perto, trazidos pela vibração das guitarras elétricas, que reverberam por entre as árvores e os fantasmas desta quinta durante décadas esquecida.
De dia, como de noite, a clareira não enche. Mas o recinto está composto, e quem lá está, está por prazer e generosidade. Não enche porque o porco Rosalina “todas as sextas-feiras vai ao cabeleireiro fazer uma mise” (Hatherly, 2025: 19). E aos sábados Rosalina escreve à máquina. Por isso não pode. Escrever custa muito. Mesmo que seja só escrever um pouco sobre isto e um pouco sobre aquilo. Mesmo que seja só dizer assim e depois assim. Mesmo que seja, enfim, fazer uma coisa assim-assim. Escrever é coisa de resistentes. É até bem possível que o porco Rosalina esteja em campanha, a pentear os cabelos dos donos, ou a fazer festas nas orelhas.
A cultura de vivos que existe em Viseu é grandemente promovida por Sandra Oliveira. O Jardim das Artes e das Letras (JAL) que fundou e dirige é a sequela dos frequentemente recordados Jardins Efémeros. Muitos ainda lamentam o fim desse festival, que tantos nomes da música experimental e da arte sonora trouxe a Portugal e que morreu por falta de apoio e interesse locais.
No entanto, a ambição do JAL tem um propósito de base muito preciso e regulado, relacionado com a formação de públicos e a promoção da cultura como ponto fundamental na aprendizagem ao longo da vida e na criação de uma outra cidadania mais atenta ao pensamento ecológico e à arte dos vivos. Os muitos workshops, performances e conversas programados têm justamente esse propósito, fazendo da infância o ponto zero para a construção do futuro aluno, profissional, votante, cidadão. A pedagogia informal é tão necessária quanto a pedagogia formal das escolas.
As citações de Ana Hatherly não são em vão. Tisanas, o célebre livro de poesia experimental que escreveu ao longo de anos, serve de guião e abre o imaginário crítico e poético tão imprescindível para um bom diálogo franco sobre o “estado das coisas”. Também o ativismo de Yoko Ono é relembrado, quando a luta pela paz parece coisa utópica, quando a guerra parece ser o novo normal e a atomização dos espíritos se encolhem sob si mesmos, em casa, ao ecrã do smartphone, alheados para o sofrimento do mundo. Ambas sinalizam que o progresso não é tanto sobre as metas a atingir, mas sobre o caminho que se percorre até elas, tentado diariamente, praticado em comunidade, mesmo que o final redunde numa falha.
Nada é bom nem mau, neste jardim. O julgamento estético não importa. Este é um lugar de experimentação radical, que deve ser posto em marcha com regularidade, até que deixe de ser estranho. É um recreio imenso, com as árvores como testemunhas silenciosas, que não julgam nem apreciam, apenas existem como companhia.
Sandra Oliveira apresenta-nos Lucas F. Oliveira durante o segundo ato da performance/instalação Des.Des.Construir, que remete também para a obra de Hatherly e Ono. Lucas entra num cubo branco feito de tecido branco cortado. Vemos a sua sombra subir num escadote e preparar uma linha com uma agulha. Metodicamente, como se estivesse num exercício meditativo, começa a suturar os rasgões, num ziguezague preciso. É como se alguém vindo de um outro tempo e de um outro espaço recuperasse e cuidasse o que foi cortado, ferido, esventrado numa das Cut Piece’s de Ono. Porque depois de tanta desconstrução, já só resta construir tudo outra vez. Parece injusto dizer-se que Lucas tem 18 anos. Mas este apontamento tem um propósito político: é possível escolher-se a via artística; também os jovens do interior, longe dos grandes centros de produção artística, podem ter aqui um futuro.
Numa outra mata, a do Fontelo, Patrícia Portela e Paulo Barracosa mostram-nos a coleção de Cromos Verdes, através do pensamento ecopoético do livro que escreveram para os “guardiões do futuro”. Deambulamos por entre árvores e ladeiras, guiados pela voz de Portela e Barracosa. A introspeção afetiva da primeira é complementada pelo conhecimento científico do segundo. A cada passo aprendemos sobre a epiderme cascosa e esponjosa da Sequoia, sobre a rede de micélio que despontam em afloramentos de cogumelos ou de fungos; a fonte de São Jerónimo, padroeiro dos bibliotecários e tradutores; as árvores nativas como o carvalho, as invasoras como as acácias; e a gravação biológica que as árvores fazem de décadas e séculos que nos ultrapassam. Perdemo-nos na sensorialidade dos sons e dos cheiros, esmagamos com as mãos as folhas para delas obtermos a sua fragrância, inventamos estórias com venenos e poções extraídas das plantas. Cromos Verdes - Um Diário Vegetal de Viseu entende-se como uma ode peripatética à riqueza vegetal da cidade e um apelo para o cuidado e as práticas regenerativas do amanhã.
O programa prosseguiu no fim-de-semana de 5 e 6 de setembro, com as atuações de Lula Pena, Filho da Mãe e Ece Canli, mais performances e sessões de ioga, atividades de pedagogia pela arte e a ecologia, e sessões de vídeo com o apoio da Tate. Isolado e construído em torno de uma árvore possante, o cantinho dos jornais do dia oferecia uma leitura pelo mundo, com periódicos de diversas zonas do globo. Não muito longe, a feira do livro apresentava um conjunto de bibliografias que sustentam o pensamento teórico do JAL, com Tisanas de Ana Hatherly e Toranja de Yoko Ono, mas também catálogos e monografias sobre exposições e artistas incontornáveis da arte contemporânea portuguesa e mundial.
BIOGRAFIA
José Pardal Pina é Editor Adjunto da Umbigo desde 2018. Formação: Mestrado Integrado em Arquitetura pelo Instituto Superior Técnico, Universidade de Lisboa; Pós-graduação em Curadoria de Arte pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa. Curador dos projetos Diálogos (2018-2024) e Paisagens (2025-) na Umbigo.
PUBLICIDADE
Anterior
agenda
UNLEARN: Chain Reaction na Brotéria
15 Set 2025
UNLEARN: Chain Reaction na Brotéria
Por Umbigo