article
Ultima 2025 - Festival de Música Contemporânea de Oslo
DATA
24 Set 2025
PARTILHAR
AUTOR
José Pardal Pina
"Deverá ser consensual que o som e a música não são só sobre como e quem os produz, mas também sobre como e quem os escuta. Nesta perspetiva, o festival Ultima é uma lição, que ensina os espectadores e ouvintes a escutar melhor, a serem mais exigentes e a descobrirem todo o edifício arquitetónico, objetual, informativo e conceptual por detrás da composição sonora."
Para se compreender o conceito por detrás do festival Ultima 2025 há que conhecer Oslo. Não é necessário, todavia, um ensaio fenomenológico sobre a cidade, embora esta se preste com a maior das facilidades ao devaneio ensaístico e filosófico.
Oslo não é uma cidade como as outras. Provavelmente, a Noruega não será também um país como os outros. Qualquer referencial ou aproximação serão sempre forçados, mercê da especificidade – outros diriam excecionalismo – do país e da cidade, que se desenvolvem entre fiordes, manchas verdes e prateadas de bétulas, abetos e pinheiros resinosos, gelo, edifícios de arquitetura contemporânea marcantes, redes viárias bem delineadas e uma vaga sensação de mistério conjurada por fenómenos astrais e camadas culturais bem vincadas da literatura norueguesa: Pan e Mistérios, de Knut Hamsun, são indissociáveis desse sentimento de espanto perante a paisagem e os territórios noruegueses. De noite, as luzes cintilam nas poças de água: um cruzeiro atracado nas docas, com as luzes de bordo acesas; um ferry fora de horas, emitindo luzes verdes e encarnadas; pequenos pontos luminosos do outro lado do arco de terra formado pelo fiorde; a luz branca, mas não ofuscante, dos candeeiros de rua; um brilho fugaz trazido pelo elétrico; eventualmente a luz de um telemóvel, que se esconde entre os troncos das árvores dos muitos parques públicos que a cidade oferece.
E depois das luzes há as árvores e os parques, e as esculturas nos parques e nas árvores – nenhuma outra capital europeia tem um tão grande número de esculturas espalhadas por parques que parecem florestas: o Ekebergparken, com inesquecíveis obras de Louise Bourgeois, James Turrell, Ann-Sofi Sidén ou Matt Johnson; o Frognerparken, pontuado pelo menir de corpos, esculpido por Gustav Vigeland; o parque de Tjuvholmen, à beira da água, em que as esculturas de Louise Bourgeois, Ugo Rondinone, Franz West e Paul Macarthy vibram num entorno lúdico; a meia-hora de distância, nos subúrbios verdejantes de Oslo, o parque de esculturas do Henie Onstad Kunstsenter, encimado pela célebre banana de Trygve Fredriksen, mas também com interessantes peças, embora mais discretas, de Camille Norment, Bård Breivik, Jan Håfström, esta última não muito longe da pedra onde o filósofo Arne Næss se sentava a meditar sobre a “ecologia profunda” (“deep ecology”) – termo que cunhou.
É sobre estas luzes e esta cidade, estriada por montanhas e línguas de água, que nasce o conceito para o Ultima 2025, ao fazer das cintilações feéricas de Oslo e do confronto entre Natureza e construção mote para a programação de concertos, instalações, microfestivais, palestras e workshops. De facto, é sobre elas que o concerto inaugural de Joanna Bailie se constrói, na catedral de Oslo. A composição vocal emula esse calmo passeio por entre os brilhos noturnos da cidade, procurando harmonizações suaves, formas evanescentes, como se uma brisa polar tivesse sido soprada por um glaciar remoto e entrado pelas portadas da catedral. Há algo de tântrico e meditativo na performance: se o ouvinte fechar os olhos e se deixar guiar pelo fluxo sonoro, entra num langor aquoso e flutuante. Os agudos de um lado, os graves do outro, mesclam-se numa polifonia ascética, sem, no entanto, entrar na tradição gregoriana. O Coro da Catedral de Oslo não desarma o conjunto, nem mesmo durante a deambulação pelo altar-mor, encontrando os tons e as notas corretas com um brusco bater na cabeça de diapasões metálicos e seguindo o esbracejar controlado da diretora, Vivianne Sydnes. A apresentação do coro procurou romper com o formalismo da cerimónia: os cantores apresentavam-se como se tivessem saído das mais mundanas atividades, depois de uma corrida, no caminho para as compras, diretamente saídos de tarefas domésticas. A catedral era um lugar de comunhão, um centro comunitário, sem pressas nem constrangimentos, procurando na voz a via longa para um espírito partilhado. Se houvesse uma teologia da composição coral proposta por Bailie, essa parecia ser a mais aproximada.
Prosseguimos. Chove amiúde. Depois para. A água escoa pelos esgotos; flui pelo alcatrão e pelo betão, em direção às profundezas. Seguimos-lhe o rastro à superfície, através do autocarro.
Paramos num descampado. Oslo, mais ou menos distante, mas não muito. Estamos no sopé do Ekebergparken, diante de hangares industriais. É a estação de tratamento de águas residuais. Recebe-nos um trabalhador fluorescente, da cabeça aos pés. Explica-nos onde estamos e o que vamos ver e escutar. Descemos à crusta da terra por escadas metálicas e atravessamos um corredor imenso. As tubagens largas conduzem a água até aos tanques de tratamento. E então ouvimos a gota a cair, a replicar-se em outras pequenas gotas, mas o som reverbera, distorce-se e alterna entre graves e agudos, numa composição imprevisível, alimentada por algoritmos sofisticados, e quilómetros infindos de cabos elétricos. É Dråpen, de Arne Nordheim, pertencente à coleção de arte da cidade de Oslo – uma instalação sonora de impressionante complexidade, que ganha contornos hitchcockianos no lodaçal de águas residuais, nas naves imensas, na luz subterrânea, fria e seriada, ao longo de corredores múltiplos. A fotografia de Nordheim a preto e branco, ao lado da porta que dá acesso às naves rochosas, de contornos impercetíveis com o jogo de luz e sombras, antecipa a atmosfera fantasmática produzida pelo som.
Dråpen é uma gota que se decompõe e recompõe, como que caindo e ativando um sistema eletrónico obscuro, para o deixar num curto-circuito interminável: o som de um verme a contorcer-se com choques elétricos, agitando-se segundo os ritmos quotidianos de Oslo. O frenesi da água e da estação excita a máquina. Os sons são imprevisíveis, recolhidos de diversas proveniências e misturados pelo computador de acordo com padrões pré-estabelecidos. Uma análise combinatória poderia estimar centenas de milhares de sons diferentes, vibrados por 32 altifalantes escondidos.
Há reminiscências da música concreta, mas também do experimentalismo radical e da plasticidade da música eletrónica que Nordheim estudara em Varsóvia. A experiência é hipnotizante, no polo oposto das vocalizações propostas por Bailie. Existindo um contexto exato para o uso da palavra visceral – frequentemente usada e frequentemente mal usada – este parece ser o mais adequado.
Não há roteiro. Deambulamos pelo centro de Oslo, perscrutando as fachadas envidraçadas de edifícios contemporâneos de multinacionais e de gosto duvidoso. Panos de vidro fumado, panos de vidro translúcido, panos de vidro transparentes, espelhados, coloridos. Os reflexos transformam os corpos, os automóveis e as árvores em espectros evanescentes. Espreitamos os interiores com os candeeiros, os sofás, as carpetes secas e as flores de plástico, em arranjos sempre vibrantes.
É nesta atmosfera dúbia conjugada pelo vidro que situamos a instalação de Hans Rosenström, Broken Chord, no Atelier Nord. Rosenström subverte a rigidez do vidro, fazendo nele soar a voz. Novamente um coro de vozes – estas, todavia, mais porosas e sussurrantes, como se fossem sopradas em vez de vibradas pelas cordas vocais.
O espaço desmaterializa-se, perdemos a noção de interior e exterior, distância e proximidade. Os murmúrios transformam-no num território impreciso, numa paisagem em perpétuo devir, cuja imagem se refaz e fragmenta enquanto circulamos pela instalação. A simplicidade formal é inversamente proporcional à experiência que dela guardamos, que se amplia e metamorfoseia com o tempo e o passeio.
Há ainda algo de intimista, em toda a instalação sonora – como se a sensorialidade visual e auditiva criassem uma vaga sensação de secretismo e confidência. É a voz, por certo, mas é também uma estranha camada cultural fetichista de quem se abeira a uma janela e tenta descortinar a coreografia silenciosa dos corpos velados por uma cortina, obrigando-nos a encostar ainda mais o rosto à superfície fria e embaciada do vidro. E essa intimidade é proibida e desejada, debatida pelo sopro vocal, que é consciência e inconsciência, pudor e despudor, franqueza e malícia, e que Rosenström deixa em tensão.
Liquid Room é uma experiência que pode ter duas abordagens: uma que se leva sem o compromisso entre espectador e performers, deambulando livremente pelo espaço, de copo na mão, saindo da black box do edifício da Norwegian Opera & Ballet; outra que, num exercício de endurance e resistência física e mental, tanto desafia o espectador como os performers, para assim testar os limites de uns e de outros. Foram três horas de concertos rotativos baseados na obra de Robert Ashley, Perfect Lives, concebida na América dos anos 1970. A alucinante rotação de performances, a liberdade para se explorar a plasticidade dos sons, dos instrumentos e dos corpos, a diversidade de composições, entre o experimental, o conceptual e o jazz, ofereceram uma experiência inesquecível. Cansativa, sem dúvida, mas profundamente enriquecedora e hiperestimulante. Momentos-chave da XII edição: Laurie Anderson’s iconic O Superman, interpretada Tarek Halaby, os malabarismos virtuosos e excitantes de Susana Santos Silva, a performance de Nina Guo nas peças de Ashley, trazendo uma locução nostálgica e cómica do sonho americano, e o afrofuturismo, com laivos de improviso, de Jessie Cox.
Deverá ser consensual que o som e a música não são só sobre como e quem os produz, mas também sobre como e quem os escuta. Nesta perspetiva, o festival Ultima é uma lição, que ensina os espectadores e ouvintes a escutar melhor, a serem mais exigentes e a descobrirem todo o edifício arquitetónico, objetual, informativo e conceptual por detrás da composição sonora. The Question of Knowing, um concerto instalativo de Olga Kokcharova, Ewa Jacobsson & Hilde Marie Holsen e o Ensemble Contrechamps, no Henie Onstad Kunstsenter, aponta nessa direção, ao revelar e desconstruir os vários sistemas de que se fazem o som e as composições contemporâneas.
Primeiro, o ruído de fundo, que teimosamente é retirado na pós-produção musical, procurando uma experiência sonora pura, imaculada. Em signal-to-noise ratio, Olga Kokcharova contraria e desafia esta noção cristalina do que a música deve ser, compondo uma série que se faz de ruído. A atmosfera é insidiosa, mas igualmente deslumbrante – reveladora do que constitui o som e da perceção que guardamos dele. Também o ruido pode ser emocionante, talvez porque revela o que há de mais humano e imperfeito no som.
Depois, a constatação de que tudo é som, tudo produz som, tudo apresenta uma sonoridade e musicalidade em potência. Esse devir-som é a génese da instalação e composição Labyrinthic Explanation of Knowledge, de Ewa Jacobsson & Hilde Marie Holsen, que pede ao Ensemble Contrechamps o uso de objetos do quotidiano para comporem uma banda sonora do que pode ser um diário sonoro, feito de misturas várias e alguma alienação trazida pela modernidade. O som é feito de circuitos, de relações, de transformações. Mas também é feito de informações, de inputs e outputs, de arquivos e registos, de processamentos e algoritmos. Terminada a performance, passeamos pela instalação, descobrindo altifalantes e cabos que interligam núcleos de objetos, cada um com o seu toque e memória, cada um com a sua idiossincrasia: lixo, coisas, artefactos, uns industriais, outros de consumo.
Houve, todavia, dois outros momentos que, através do insólito e da saturação sinestésica, se revelaram pertinentes na abordagem que fazem da vida atual. O maximalismo e o absurdo batem-se em duas peças que obrigam a uma reflexão crítica. Dragonblood e HISTORY DOES NOT EXIST serão, porventura, obras que requerem conversa, diálogo e abertura para experimentar o novo. Se no primeiro temos uma metaironia que faz do escapismo fantasioso uma tortura; no segundo é a constatação de que escrever a história é tarefa inglória, numa era sem escrúpulos, referenciais morais, éticos ou científicos.
Dragonblood – como explicar? – é um delírio incestuoso criado por um nerd ou incel pubescente e com crises ejaculatórias noturnas. É duplamente videojogo e teatro musical, mas é também uma Gesamtkunstwerk em esteroides. Um espetáculo maximalista, que subverte as regras da realidade, brinca com a cultura cibernética e cibergótica, serve-se dela para criar a dúvida e, enfim, indagar: o que é a sinceridade e a ironia? Como encarar a palavra, a verdade, depois de tudo ter sido esvaziado de significado. Esta peça podia ter sido um meme. Esta peça é, de facto, um meme retirado de uma rede social, comentado numa entrada obscura do Reddit, fabricado na perversidade e alienação do estágio limite da modernidade. É uma excrescência do capitalismo tardio, um regozijo desalmado por tudo o que é lixo, porque, afinal, só nos resta isso mesmo. É um espetáculo com produção cara, que serve para frustrar; com bravura técnica por parte dos atores.
Às tantas perguntamos: quem é que gastou este dinheiro todo, numa coisa destas?!
A resposta só poderá ser uma: uma geração desencantada, que encontrou os seus próprios mecanismos e mitologias para lidar com uma vida absurda, rompendo radicalmente com qualquer hierarquia, trespassando qualquer direito de propriedade e autoria, esquecendo as amarras do poder, para então se entregar no vórtice aceleracionista e decadente. É lixo, sim, mas um lixo triunfante, quando só ele restará no final de tudo.
Por seu lado, HISTORY DOES NOT EXIST segue a mesma linha maximalista e faz do caos da história matéria-prima. É tudo igualmente absurdo. Quando Trond Reinholdtsen / The Norwegian Opera e a Oslo Sinfonietta põem todos os grandes períodos da história de seguida, gritados em jeito infantil e com atores mascarados, compreendemos: a história é uma sucessão de violentos absurdos. Mas isso é partir do pressuposto de que a história se constrói, que assenta num edifício estável, com critérios científicos inabaláveis pelo quotidiano. Porque quando todo esse edifício ruir, ou quando compreendemos que esse edifício mais não será que um espectro de um desejo iluminista, não existindo para além dessa espectralidade, então percebemos que a história não pode existir, pois que (já) não existe verdades, nem factos, nem sentido para as palavras, nem estruturas idóneas e isentas que zelem pela facticidade dos factos. HISTORY DOES NOT EXIST marca o fim do iluminismo e o início do iluminismo das trevas, em duas projeções ciclópicas, intercaladas com uma banda sonora tragicómica.
Reinholdtsen vai alertando para os problemas da linguagem, mas não em sentido moralista. De facto, Reinholdtsen não se interessa muito com a linguagem (ou interessa-se?); vai chamando os espectadores, em jeito de comentário, para o nexo daquela coisa; se os espectadores quiserem compreender o que se está a passar, ele pode contar, porque é importante que os espectadores compreendam aquele rol de guerras e vitórias… e massacres e genocídios. Fome generalizada. Pobreza. Tragédias. Desastres. É importante ler o texto que diga o que aquilo é, que exponha os argumentos e a lógica da construção dos parágrafos e tudo e tudo. Saussure, depois Derrida e Barthes. Não há signos. Não há significados. Mas é preciso lembrar os estruturalistas e os pós-estruturalistas. Há um lugar na plateia para eles.
Os espectadores giram numa das salas do antigo Museu Munch, incapazes de perceber o que se está a passar. A música é uma sucessão de crescendos, que depois caem em nadas. Vídeo e música estão separados, porque a música não serve de fundo para a imagem. Existe como categoria autónoma, mas por vezes conciliável.
HISTORY DOES NOT EXIST mais não poderá ser que uma pantomima, um banho ácido sobre a realidade – uma realidade, aliás, escrita por um demiurgo muito inspirado ou, então, muito, muito bêbedo, vendo o projeto hegeliano em tudo o que já não existe.
O festival Ultima 2025 decorreu entre os dias 11 e 20 de setembro, em vários locais da cidade de Oslo.

A Umbigo viajou a convite do Ultima.
BIOGRAFIA
José Pardal Pina é Editor Adjunto da Umbigo desde 2018. Formação: Mestrado Integrado em Arquitetura pelo Instituto Superior Técnico, Universidade de Lisboa; Pós-graduação em Curadoria de Arte pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa. Curador dos projetos Diálogos (2018-2024) e Paisagens (2025-) na Umbigo.
PUBLICIDADE
Anterior
article
Espírito Singular, no Centro de Arte Oliva
24 Set 2025
Espírito Singular, no Centro de Arte Oliva
Por Mafalda Teixeira
Próximo
article
Apertura Madrid 2025
29 Set 2025
Apertura Madrid 2025
Por Maria Inês Mendes