No ponto mais baixo de um edifício situa-se a cave, lugar de descida, enfiado no solo. São espaços para guardar segredos, encontrar esconderijo e isolamento. Desde cedo que encontramos nelas um porto seguro para o armazenamento de alimentos ou de ferramentas essenciais que suportam a vida que existe no seu exterior. Mas viver num lugar assim, sem luz, odores ou quaisquer referências de tempo e espaço, pode provocar sentimentos profundos de abandono, esgotamento, e de separação com o mundo. Prisões ou canis relacionam-se com a cave – são lugares de inércia, de ausência de liberdade e castigo.
Henrique Biatto encontra na cave que é a Belo Campo lugar para explorar a dualidade que existe entre a delicadeza das suas peças e este sítio em bruto. Um diálogo que é feito a partir de uma observação atenta sobre o mundo animal, porque olhar para os animais é reconhecer a nossa humanidade. O que de comum encontramos neles é também o que nos diferencia e vice-versa, nunca esquecendo que os animais também nos olham – especialmente o cão, animal que diretamente associamos a Canil, título desta que é a primeira exposição individual de Henrique Biatto, com curadoria de Ana Grebler.
Para nos ajudar a caminhar na escuridão precisamos sempre de um guia, e é o cão que, desde o princípio, nos auxilia a encontrar o caminho, físico ou espiritual. Descobrimos no cão o sentido de orientação e olfato que nos ajuda a avançar no desconhecido. Domesticamo-lo para ser o nosso guia, caçador ou detetive (cão-guia, cão de caça, cão-polícia). E, anteriormente, o deus-cão egípcio Anúbis conduzia-nos ao mundo dos mortos, mas nunca sem antes pesar o nosso coração e, assim, avaliar a nossa bondade. Henrique Biatto parece apoiar-se no místico do cão, assumindo também o papel deste animal, guiando-nos pelos segredos desta cave. O artista escava, enterra e esconde inúmeros objetos que possuem forças mágicas, e que ansiosamente aguardam pela nossa presença e descoberta.
Na obra de Henrique Biatto é recorrente a referência à questão animal, aos processos de domesticação ou controlo da natureza, e às ferramentas práticas que servem esse propósito. Em O pau e a poda (2023), vemos uma série de objetos que remetem para o ato de podar, técnica utilizada na jardinagem ou agricultura para renovar uma planta ou torná-la mais produtiva. Notamos nas luvas, nos utensílios, paus, fio barbante, ou saco do lixo uma zona inerte, porém sugestiva de ação. O mesmo acontece em Garrafa [Gênesis] (2023), uma referência direta ao passado da Belo Campo, que foi adega. A tensão entre a garrafa de vinho e o martelo que incide no seu gargalo sem qualquer suporte de mão humana sugere um movimento de abandono, uma ação perdida no tempo, porque a cave é sempre melancolia e esquecimento. É deserta de presença humana e, por isso, chamativa de presenças clandestinas. Neste sentido, surge Mus musculus (2022), uma série de pequenas peças em cerâmica que remetem para uma comunidade de ratos. São oito roedores curiosos que interagem com um gerador que pertence à Belo Campo. Esquivos por natureza, ágeis e difíceis de apanhar, sugerem tenacidade pela sua capacidade de roer qualquer superfície e sobreviver nos mais inóspitos ambientes.
Se os ratos vivem como marginais dentro do mundo dos humanos, os cães são o seu oposto. Domesticáveis, dóceis e leais, circulam dentro do nosso mundo na perfeição, queremo-los na nossa casa, intimidade e companhia. Mas sem esquecer que o seu passado é o lobo, que as suas raízes são selvagens, Henrique mostra Canines (2023), levando-nos até ao imaginário dos dentes, da sua ferocidade e incisão. Há nas peças a potencialidade do perigo, seja nas cerâmicas que aludem a dentes caninos, ou no prego, concha e vidro pontiagudo. Os dentes e materiais de corte evocam a agressão, a sobrevivência e a caça. E em cada uma das cerâmicas há uma pequena perfuração que aponta para tempos ancestrais, onde dentes de animais serviam de adorno para colares. Por outro lado, o título da obra remete para todos os animais da família dos cães, desde raposas, chacais a lobos, e lembra-nos que estes terão sido dos primeiros grupos de animais a serem domesticados pelos humanos[1].
As armas e ferramentas são meios com que os humanos controlam o ambiente à sua volta. Em Escape (2021), o artista cria uma armadilha para o espetador com uma obra que bloqueia a passagem para a última sala da exposição. É o espetador que detém a escolha de entrar ou não, de cair ou escapar à cilada. Se até aqui o espetador tinha sido cão dócil e curioso, é neste momento que nos aproximamos do animal selvagem, à beira de cair numa zona de perigo. Para lá desta barreira, a ameaça intensifica-se com as obras Focinheiras (2023), Garras (2023) e Rédea (2023), peças em cerâmica que ilustram utensílios de domesticação animal.
Sobre olhar para os animais, John Berger escreveu: “Os olhos de um animal, quando olham para um homem, estão atentos e desconfiados. O mesmo animal pode muito bem olhar para outras espécies da mesma forma. Ele não reserva um olhar especial para o homem. Mas em nenhuma outra espécie, exceto no homem, o olhar do animal será reconhecido como familiar. Os outros animais são retidos pelo olhar. O homem toma consciência de si próprio ao devolver o olhar”.[2] A prática de Henrique Biatto insere-se nesta reflexão, onde olhar de perto para os animais é encontrar em si próprio uma essência que o faz retornar a uma condição primordial.
Canil remete para um lugar de domesticação que revela a tensão que existe nas relações entre humanos e animais, uma relação de dualismos, tanto de adoração como sacrifício. É nas observações que fazemos do mundo animal que encontramos a magia das suas estruturas, a sua natureza autónoma, cheia de variáveis fora do controlo humano. O silêncio dos animais exclui-os da humanidade, mas olhando para eles sabemos que nascem e que morrem, e que por isto se parecem connosco. São e não são como nós; diferentes, mas iguais. Olhar nos olhos do animal é saber que na morte os nossos caminhos se cruzam, que no fim regressamos com eles à terra. Henrique Biatto sabe-o, e por isso olha-os.
A exposição está patente na Belo Campo, espaço simbiótico com a Galeria Francisco Fino, até ao dia 20 de abril de 2024.
[1] Lariviere, Serge. (2019). “Canine | Mammal.” In Encyclopedia Britannica. https://www.britannica.com/animal/canine
[2] Berger, John. (1980/2009). Why Look at Animals?. London: Penguin Books, p. 13. No original: “The eyes of an animal when they consider a man are attentive and wary. The same animal may well look at other species in the same way. He does not reserve a special look for man. But by no other species except man will the animal’s look be recognized as familiar. Other animals are held by the look. Man becomes aware of himself returning the look”.