O Atelier-Museu Júlio Pomar assenta a sua prática, muitas vezes, nos diálogos estabelecidos entre as obras de Pomar e as obras de artistas convidados, de gerações mais novas. Diálogos que irrompem por meio da palavra, por meio de manchas generosas que se formam no desenho ou por traços vigorosos, urdidos pelo artista, conforme se pode observar nas obras que nos deixou.
Na exposição agora patente no museu, do OSSO Colectivo + Júlio Pomar, O tom do pomar (INVASOR ABSTRACTO #7), gestos desferidos sobre a tela ou em folhas de papel ouvem-se agora, enérgicos, numa gravação que ecoa, ampla, pela quadrangular sala expositiva. Um habitáculo cúbico, Noite (2024), protegido por dentro e por fora por um tecido a negro, revela os sons produzidos pelo artista[1] quando desenhava no ateliê. A penumbra no interior reforça o efeito da escuta e a ausência do artista.
Em torno do cubo habitam obras de Pomar. A pintura Gadanheiro, de 1945, é uma obra pertencente ao movimento neorrealista inicial, reveladora do génio revolucionário do artista e do espírito opositor ao regime conservador da década de 1940. Outras obras, reações ao regime fascista e indicadoras de uma alusão às condições de trabalho, podem ser vistas no espaço, como o estudo Ciclo do Arroz II, de 1953, Maria da Fonte, de 1957, ou ainda Mulheres na lota (Nazaré), de 1951.
Uma série de doze caveiras, desenhadas a tinta permanente sobre papel, de 1963, acompanham três assemblages do artista e comprovam que a sua extensa obra não se resumiu apenas à pintura enquanto meio de expressão, mas a uma imensa atividade artística que se estendeu também a outras disciplinas, como a gravura, a escultura, a tapeçaria, a cerâmica[2]. A assemblage O juiz e a cigarra (1967-1986), a exemplo, testemunha a riqueza dos seus elementos constituintes, compreendidos por fragmentos de ossos, elásticos, pequenos troncos, entre outros objetos, fixados em madeira sobre suporte em metal. Em 2017, a mesma peça foi exposta aquando da exposição Júlio Pomar e Cabrita Reis: Das pequenas coisas, um diálogo expositivo do artista com Cabrita Reis, e que consistia no confronto/cruzamento das obras do primeiro com o segundo, tendo por base assemblages de materiais diversos e os objets trouvés/ready–mades que evocaram o dadaísmo, o surrealismo e a prática de Marcel Duchamp.
Ainda no domínio recoletor do artista, podemos entrever Faixa de Gaza (1997 – 2007), obra que constitui mais um exemplo de assemblage, composta por vários objetos, como uma caixa de cigarros em madeira, dois telefones sem fios, barro, espuma de poliuretano, areia, papel, lata, couro, conchas, peça de Lego, ferragens e cartão canelado. Neste grupo encontra-se outra obra, Sem título (1967-1986), uma peça que ostenta ossos, brinquedos de plástico, ferragens e uma pequena corneta, que nos faz recordar que a exposição não é tão-somente uma obra de Júlio Pomar, mas antes um diálogo que se estabelece entre as obras do artista e as instalações sonoras do OSSO Colectivo. Gestos rápidos e incisivos de Pomar, presentes nas obras expostas, ribombam ao mesmo tempo que os ruídos que ondulam e descrevem linhas em todas as direções, languidamente, difundindo-se sobre as paredes e as composições de Pomar.
Pequenos transístores, colunas no interior de estruturas cúbicas, esculturas com áudio incorporado, entre outros, entrecruzam o espaço da galeria e estabelecem conexões com as obras de Pomar. Enquanto se ouvem as vozes e os ruídos oriundos do filme, somos interpelados por pequenas pontuações sonoras que se encontram espalhadas pelo espaço expositivo e revelam sons do quotidiano. Esta constante osmose reverberativa é o resultado de um trabalho realizado pela equipa OSSO Colectivo, constituída pelos elementos Ricardo Jacinto, Nuno Morão e Rita Thomaz. O coletivo, dedicado a conceber instalações, performances e concertos, pretende estabelecer um conjunto de relações entre a obra selecionada de Júlio Pomar e o som e imagem[3], nos termos da observação social, natural, simbólica e material da vila rural de São Gregório, nas Caldas da Rainha [4].
O tom do pomar (INVASOR ABSTRACTO #7) está patente no Atelier-Museu Júlio Pomar até 26 de maio de 2024.
[1] Gravações sonoras realizadas por Ricardo Jacinto, OSSO Colectivo, em 2012, para integrar a banda sonora do filme de Tiago Pereira, Só o teatro é real (2013). O som é mono e foi posicionado dentro de uma caixa pintada de negro e coberta de alcatifa.
[2] Gonçalves, A. (2017), Júlio Pomar e Cabrita Reis: Das pequenas coisas, Coord. Sara Antónia Matos, Atelier – Museu Júlio Pomar.
[3] Folha de sala de OSSO Colectivo + Júlio Pomar – O tom do pomar (INVASOR ABSTRACTO #7).
[4] Ibidem.