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Lâmina da Lua: o ritual como resistência
DATA
18 Jun 2025
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AUTOR
Laurinda Branquinho
O ritual é antigo. Com raízes em práticas ligadas ao sagrado e a cerimónias, reconfigura-se hoje como uma linguagem crítica e afetiva que propõe outros modos de estar no tempo e no mundo. A imagem do ritual é lenta, densa e ambígua, por vezes indecifrável, como se cada movimento tentasse aceder a algo anterior à linguagem. Por isso, o ritual surge como um gesto de resistência à aceleração do olhar.
É neste contexto que se inscreve Lâmina da Lua, a exposição que dá início a um novo ciclo expositivo com curadoria de Ana Rito e Hugo Barata, na continuidade das investigações que iniciaram no programa Videologias. Aqui, o olhar desloca-se para a ideia de ritual como prática contemporânea que propõe uma reconfiguração da perceção, do tempo e da relação com o visível. As obras de Margarida Nuno Oliveira, Francisco Novais, Rita Barqueiro, Lia Falcão, Tomás Saraiva, Mafalda Ar, Francisco Rodrigues e Lula Pena, constituem pequenas cerimónias visuais que nos transportam para mundos simbólicos cheios de tensões.
O trabalho de Margarida Nuno Oliveira, apresentado em múltiplos suportes — vídeo, fotografias, posters — desenha relações entre o efémero e o vestígio, fazendo do arquivo um lugar orgânico recheado de fragmentos que reforçam a dimensão de ritual. Em drums (2021), Francisco Novais constrói uma peça hipnótica a partir de postais vintage das Rocky Mountains. A pulsação criada pelas várias imagens é possível através da montagem e do som, que dão origem a uma nova leitura sobre a paisagem e o arquivo.
O vídeo de Rita Barqueiro nocturnal ballet (2025), encena movimentos de luz sobre troncos e folhas. Na noite, a luz da lanterna sublinha os contornos da natureza desenhando na escuridão. No contraste entre o negro da noite e os contornos que emergem, instala-se um estado de atenção e suspensão — o ritual reside na repetição silenciosa do gesto. A dimensão onírica adensa-se com as aguarelas de Lia Falcão que convocam formas arborescentes e imagens que parecem emergir de um estado interior. São desenhos que se insinuam como visões.
A mão, arquétipo de ação, toque e cuidado, aparece na pintura de Tomás Saraiva suspensa num tempo sem narrativa. Na pintura é inscrita a frase “que tudo cura”, como se o gesto da mão (e talvez o da pintura) fosse o de escrever um feitiço ou uma promessa. Nas fotografias de Mafalda Ar, o corpo é íntimo e enigmático. As imagens abrem fissuras na perceção, como se fossem feitiços visuais que parecem falar sobre dores íntimas, tensões entre o que se sente e o que se mostra.
A dupla presença de Francisco Rodrigues com os vídeos Horseplay e Lido, faz colidir o sonho e o quotidiano. As imagens de Horseplay (2024), inundadas por luz vermelha, são hipnóticas no cenário de desejo e delírio que convocam. E em Lido (2025) o artista compõe um diário sensorial de imagens captadas com uma delicadeza quase táctil — vestígios de um verão suspenso, íntimo, existencial. É um trabalho meditativo com um monólogo interno que procura sentido no que vemos e sentimos.
Lula Pena encerra a exposição com La Femme Tranquille de La Tribu (2023), trabalhando a imagem como encantamento. Com folhas e luz, multiplicadas por um efeito de espelho, a artista constrói uma figura que evoca um rosto feminino. É uma presença que flutua entre a natureza e o símbolo, uma mulher-planta, mulher-espírito, construída a partir da imaginação e que reforça a dimensão ritual da imagem.
O título da exposição, Lâmina da Lua, condensa muitas das tensões descritas nas obras. A lâmina é um objeto ambíguo, pode ferir, mas também abrir, esculpir, traçar caminhos. A lua não emite luz própria, mas reflete — devolvem o clarão do sol de forma filtrada, suave. Há nela uma qualidade cíclica e transitória, um poder de convocar forças invisíveis, de afetar marés, corpos e humores. Ao unir estres dois elementos — o corte e o reflexo — o título propõe uma travessia pela ambivalência, entre o visível e o oculto, o tangível e o simbólico, a matéria e o mito. A exposição propõe uma travessia sensível por mundos e linguagens, construindo-se como um percurso liminar feito de superfícies que se entreabrem, tal como um véu.
A exposição está patente na Duplacena 77 até 18 de junho de 2025.
BIOGRAFIA
Laurinda Branquinho (Portimão, 1996) é licenciada em Arte Multimédia - Audiovisuais pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Estagiou na Videoteca do Arquivo Municipal de Lisboa onde colaborou com o projeto TRAÇA na digitalização de filmes de família em formato de película. Recentemente terminou a Pós-graduação em Curadoria de Arte na NOVA/FCSH onde fez parte do coletivo de curadores responsáveis pela exposição "Na margem da paisagem vem o mundo" e começou a colaborar com a revista Umbigo.
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