O rosto, essa superfície exposta, é um lugar de leitura, de projeção e de ocultação. É no rosto que procuramos sinais de identidade, expressão, linguagem e emoção. Mas é também lugar de opacidade, tanto pode esconder quanto revelar, mascarar, encenar ou iludir. E tem ocupado um lugar central na história da arte como elemento em continua reinvenção: ora idealizado, ora fragmentado. E porquê insistir no rosto? Talvez por ser nele que mais intensamente se concentram os sinais do que somos e do que ocultamos.
Na exposição Aldebaran Caída por Terra, patente no Museu Nacional de Arte Contemporânea, Adriana Molder debruça-se sobre o rosto enquanto espaço de estranheza onde se projetam ficções, máscaras e silêncios. O uso do rosto como motivo recorrente não parece servir uma lógica de retrato. Não se trata de representar alguém, mas sim de tornar visível uma condição — talvez a da queda, da perda de lugar, de uma identidade que se descola da sua imagem. O título da exposição convoca a imagem de uma estrela que desceu do céu, Aldebaran, reforçando essa leitura. Algo aqui caiu por terra — o rosto como vestígio de uma queda, de um corpo simbólico em colapso.
As obras expostas formam um conjunto que oscila entre o pictórico e o escultórico. São rostos pintados, a pastel de óleo ou tinta-da-china, sobre suportes irregulares ou moldados, com uma fisicalidade que desafia o plano bidimensional. As formas sugerem fragmentos de algo maior, rostos que não chegam a ser corpos, pendendo da parede por cordões. Em conjunto, configuram uma instalação que ocupa o espaço levitando, onde tudo está em suspensão.
As pinturas distribuem-se ao longo de três salas em diversos núcleos. Algumas, surgem isoladas sobre fundos monocromáticos — vermelho, amarelo e preto; outras, compõem uma instalação de fragmentos com diferentes cores e tamanhos, criando um campo visual denso e saturado que se aproxima de uma lógica dramatúrgica. Há algo de teatral no modo como as pinturas se apresentam: suspensas, encenadas, como se ocupassem um palco invisível. E a disposição das obras no espaço evoca cenas ou atos, momentos de aparição, confronto ou silêncio.
E tal como na tragédia ou nas fábulas estes rostos não explicam, mas sim sugerem, insinuam e deixam em aberto. Há neles uma tensão entre a aparência e o indizível, como se cada rosto fosse o eco de uma história perdida no tempo. Não surpreende, por isso, que a artista convoque o universo literário como referência. Adriana Molder menciona os Sete Contos Góticos de Karen Blixen como matéria que atravessa a exposição — o título da exposição é exatamente uma citação do conto The Roads Round Pisa. Tal como os textos de Blixen, as imagens de Molder parecem habitadas por enigmas, por zonas de sombra e encantamento que se revelam tanto na linguagem visual como na própria montagem da exposição.
Oferecer uma estrela caída do céu ressoa com a prática artística: é transformar em dádiva aquilo que já caiu ou se perdeu. Recolher fragmentos, imagens, vestígio, e com eles compor uma constelação de figuras, é abrigar pedaços de uma queda ou de memória para tentar refazer um sentido. É um gesto que convoca os fantasmas para lhes dar reconhecimento.
Ao insistir no rosto como enigma, Adriana Molder transforma a exposição num exercício de atenção, não tanto ao que se vê, mas ao que insiste em permanecer oculto, às formas que nascem da sombra — como quem oferece uma estrela caída.