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Cópias prévias, modelos posteriores
DATA
07 Nov 2024
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AUTOR
Tomás Camillis
Ao primeiro exibir tapeçarias criadas como cópias de pinturas, para depois exibir obras cujos efeitos plásticos são autóctones à própria tapeçaria, Não Vá o Diabo Tecê-las! articula, e expande, tais tensões. No piso inicial, apresenta-nos tapeçarias da notória Manufactura de Portalegre ao lado de pinturas do modernismo português que serviram-lhes de modelo.

Se fosse para buscar os favores do mundo,
teria me enfeitado de belezas emprestadas.
Montaigne [1]

Quando o atemporal Louis Kahn perguntava ao tijolo o que ele gostaria de ser, o rubro objeto, indiferente às réplicas do insatisfeito arquiteto, sempre respondia-lhe o mesmo: aspirava tornar-se um arco. Também a Arte Povera proclamou que talvez o artista não fosse esta inexorável figura que manipula o mundo como lhe convém, mas sim mero veículo à manifestação dos anseios intrínsecos aos materiais que trabalha. Pois se tudo o que há possui um cerne inalterável, mais vale submeter-se aos desejos dos objetos que fraudar no mármore o que pode apenas ser expresso na madeira, ou de empregar o tijolo em estrutura própria ao concreto — quem confunde essências apenas produziria aleijados simulacros do que poderia ter sido. Talvez a figura mais associada à tal pureza formalista seja Clement Greenberg, campeão do Expressionismo Abstrato que propunha à cada género artístico a busca pelas suas qualidades inatas — o foco da pintura seria o manejo de tinta sobre a tela plana, já divorciado de qualquer ilusionismo pictórico que afastava-a de sua real substância. “A história da pintura de vanguarda”, disse, “é a submissão progressiva à resistência do seu meio”.[2]

Qual seria, portanto, a essência da tapeçaria? Se a arte é o culto ao excesso, a sucessiva sofisticação de alguma prática utilitária até que ela transcenda a sua praticidade e encontre valor apenas em sua própria existência, então pode-se entender a tapeçaria como a maior das artes, pois quase nenhuma atividade foi-nos tão imperativa quanto o entrelaçar de fios para pescar, amarrar, vestir. E, no entanto, seu caráter lento e repetitivo foi por vezes preterido pela modernidade artística, mais afeita aos rompantes de irreverência, às sucessivas experimentações, ao imediatismo perceptivo e espontaneidade gestual — seriam tais inovações fruto da ansiedade típica da sociedade moderna que, encantada com a velocidade de seu suposto progresso, foi incapaz de conservar a quietude justo promovida pela prática da tapeçaria, mais medieval, pois advinda do senso de amparo divino?

Ainda assim, a sua rica tactilidade, seu aspecto artesanal e versatilidade espacial sempre encontraram alguns nobres adeptos, como Anni Albers e Gunta Stölzl — William Morris exaltava-a, não só pelo seu temperamento coletivo e manual (que suscitava o brilhante artesanato gótico), mas pela sua flexibilidade que, quase vestuário expandido, questionava a imobilidade da vida burguesa. Também formalista, suspeitava de oficinas têxteis que buscavam simular os efeitos da pintura, como Aubusson e Gobelins, traindo assim a essência da tapeçaria, cujo eterno entrelaço das fibras e motivos havia sido primeiro promovida no oriente persa. Se a tradição pictórica europeia havia tornado-se sobretudo naturalista, optou por dedicar-se ao método millefleur, harmonia perfeita entre o ímpeto realista ocidental e o espírito trançado da tapeçaria.

Ao primeiro exibir tapeçarias criadas como cópias de pinturas, para depois exibir obras cujos efeitos plásticos são autóctones à própria tapeçaria, Não Vá o Diabo Tecê-las! articula, e expande, tais tensões. No piso inicial, apresenta-nos tapeçarias da notória Manufactura de Portalegre ao lado de pinturas do modernismo português que serviram-lhes de modelo. Se a tradição intelectual do ocidente articula-se mediante contrários, o binómio modelo/cópia é um dos mais perseverantes de nossa paisagem psíquica. Este caráter idealista do pensamento tende a entrever em cada coisa a potência de uma pureza total, naturalmente compondo uma escada metafísica onde valoriza-se aquilo que possui um maior teor de si mesmo. Mas se abdicarmos desta convenção de reflexos que a tudo separa entre genuíno e imperfeito — como diria Deleuze, arboral —, em prol de um saber rizomático, ou seja, desprovido de hierarquias, ao entender todas as coisas apenas em referência a si mesmas, com qualidades únicas e inimitáveis, então pode-se compreender tais tapeçarias não como cópias de originais, mas como originais que apresenta-nos qualidades interditas às pinturas — e o antes visto como imperfeição torna-se qualidade, numa subversão plástica dos modelos, para que da diferença brote novas identidades.

Também artista é o intérprete, e aqui o repertório plástico da pintura, ao invés de replicado na tapeçaria, é antes traduzido em outras possibilidades pictóricas. Pois como poderia o fio conter as qualidades da tinta? Como poderia a tecelã coser o seu brilho cromático e espessura sedimentar, ou a velocidade do pincel? Tal incontornável desalinho é justo a via à uma potência que transforma obras como Sagrado e Profano II de Graça Morais num painel granulado de uma textura felpuda oposta à suavidade do acrílico/pastel e detentora de um peso, uma radiância e um calor distintos do original. Pois também a cor do tapete não é refletida como o é na pintura, que sobrepõe finas camadas na superfície, mas nasce do fundo enlaçar de fibras, conservando cada cor num tipo de micro-pontilhismo linear (fibrismo?) que outorga-lhe um efeito mais íntimo e imanente — não à toa teólogos medievais cultuavam a suposta luz própria que só a tapeçaria conserva. Esta lógica estrutural acaba por alterar as nuances tonais presentes na pintura: os nebulosos gestos no fundo escuro da pintura de Graça Morais adquirem destacada nitidez na tapeçaria, que ao conservar a autonomia de cada ponto, demarca as margens e outorga a mesma relevância pictórica a todos os tons.

Instigante gesto curatorial também revelar ao espectador tanto o painel quadriculado, primeiro momento na transcrição da pintura onde traça-se os seus contornos e mapeia-se as suas cores (e cujo caráter meticuloso contrasta com a velocidade das pinceladas), como também o verso da tapeçaria, adicionando ainda mais uma camada plástica às nossas possibilidades perceptivas. Ou não teria sido a própria modernidade quem cultuou a inquestionável importância do processo artístico, e o explorar de todos os aspectos plásticos de cada meio? Quase imagino uma segunda exposição, absurda, onde a pintora traduziria em tinta a tapeçaria antes baseada em sua obra, para enfim comparar-se as diferenças entre as pinturas inicial e final, neste infindo ciclo de inovadoras cópias e modelos reciclados que questiona noções de autoria.

Pode-se traçar a história da arte moderna como um sucessivo interesse pela matéria que enfim transforma as pinceladas de Rembrandt no culto à tinta do Expressionismo Abstrato. A Nova Tapeçaria, no segundo piso exposta, medita sobre o desenvolver formal onde os esquemas geométricos persas tornaram-se os millefleur de Morris, para enfim assumir a concretude pura de seu próprio meio. Se o piso inferior exibe todas as potências de um diálogo entre géneros que, paradoxalmente, explicita aquilo que é genuíno à tapeçaria, aqui expõe-se o desenlace natural da promoção de um experimentalismo plástico autónomo — mesmo que certas obras empreguem métodos como a colagem e o assemblage, ainda assim acentuam a promoção da plasticidade têxtil: Altina Martins apresenta-nos o suposto corno do evasivo Narval, mas é o fio brilhante que costura-os o vértice maior da peça. Tais obras adquirem assim um cariz mais realista — o peso e a tensão entre as fibras, o aspecto áspero de suas cicatrizes, a flexibilidade do fio e seu caráter escultórico. Margarida Reis radicaliza o caráter metódico da tapeçaria numa plástica que exibe a obsessiva minúcia na manufactura de todos os pontos, seu trançado realçado não apenas pelos nós abertos mas também pelo emprego de fibras áureas — outras artistas, como Gisella Santi, utilizam tramas de metal e cabelos de animais, fibras vegetais e redes de pesca, expandindo o leque material de suas práticas.

Interessante portanto ponderar que, sob certa perspectiva, o piso debaixo levanta questões mais atuais do que o superior, dado que noções como artifício e simulacro são contemporâneas enquanto que a promoção de um purismo pictórico foi mais presente na primeira metade do século passado. Talvez então o intuito maior da mostra seja tensionar os temperamentos disponíveis à prática têxtil contemporânea, que apenas por alto parecem opostos. Independe ser cópia ou modelo: tudo o que há é em exato igual a si, e no entanto nascido de outro lugar, sendo o genuíno senão postura interpretativa. Tanto o artesanal quanto a vanguarda acabam assim por encontrar-se no mesmo tabernáculo de um revoluto culto à toda a verdade expressa entre fios emprestados, não menos tautológicos que outros.

o vá o diabo tecê-las!, com curadoria de Rita Maia Gomes, está patente na Galeria do Torreão Nascente da Cordoaria Nacional até o dia 12 de Janeiro.

 

[1] Montaigne (2019). Os Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, p. 39.
[2] Greenberg, Clement. Chilvers, Ian. A Dictionary of Twentieth-Century Art. Oxford: Oxford University Press, p. 254.

BIOGRAFIA
Tomas Camillis é autor e pesquisador baseado em Lisboa. Escreve narrativas fictícias e ensaios no contacto entre arte, filosofia e literatura. Possui mestrado em Teoria da Arte pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Nos últimos anos participou de pesquisas, lecionou cursos em institutos culturais, auxiliou na organização de simpósios e publicou em revistas especializadas. Atualmente colabora com o Serviço Educativo do MAC/CCB e com a revista Umbigo.
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