Suponho que a força de Antão teria sido, para Flaubert, o tónico ideal para o mundo moderno, com seu materialismo conformista e hedonismo cínico. Em nosso cotidiano, a loucura do anacoreta é quase inconcebível. Mas o artista ainda pode ser visto como figura monástica — em meio às imagens apelativas e à espetacularização dos eventos, há sempre quem se disponha a preservar a sensibilidade pela simples promessa de alguma pequena realização, de um vislumbre do genuíno. Esta educação sentimental (Schiller chamava-lhe estética) assemelha-se à loucura e ao eventual desespero do místico — não à toa outras épocas viam no artista um temperamento saturnino: melancólico e genioso. Mesmo um artista cético, talvez, acabe por conservar um certo idealismo contrário à corriqueira praticidade que visa silenciar a nossa consciência para nos fornecer vantagens no mundo — pois a busca artística é justo o despertar da consciência como um fim em si, sem segundas intenções.
“Não sei se é devido ao clima político dos Estados Unidos ou às transformações negativas no cotidiano de nossa vizinhança, mas o novo trabalho é mais sobre mutação, rejeição e aprisionamento”, diz-nos Tim Rollins em relação à série The Temptation of Saint Anthony, realizada com o grupo KOS a partir do livro de Flaubert. “Eu e as crianças nos posicionamos como Santo Antão, em relação às coisas que acontecem nas ruas. Se uma criança quisesse largar a escola e fazer centenas de dólares por dia vendendo crack, conseguiria facilmente.”[2] Em 1982, o artista inicia, numa escola pública do Bronx, um fecundo método de arte-educação com um grupo de crianças tidas como inadequadas ao ensino formal — as eventuais Kids of Survival, com quem colaborou por toda a vida. Mediante uma prática artística estimulada pela leitura dos clássicos literários, buscava talvez contornar a padronização da cultura escolar. O artista moderno é um anti-utilitário afinal, pois investido numa prática sem limites precisos ou objetivos claros, construída numa rotina contemplativa e de livre reflexão. (Caberá a outro texto analisar a real validade de uma prática com grande vínculo à arte conceitual — que exige do artista uma certa maturidade de pensamento — e que, construída numa dinâmica de invariável desigualdade entre um adulto e um grupo de crianças, não situa-se nem só como educação artística, nem só como produção profissional.) Como discernir as relações entre o professor e o colaborador artístico, ou entre a experimentação infantil e a obediência dos alunos enquanto trabalhadores? Desde o precoce Frankenstein/Drácula até os trabalhos tardios, nota-se um amadurecer que não sei ao certo se se deu devido ao progresso das crianças ou a uma gerência maior de Rollins. Ainda assim, muitas das obras são como deveres escolares: acervos de variações do mesmo elemento central às histórias, para acolher a expressividade de cada criança — a letra escarlate cosida por Hester Prynne, as trombetas douradas de Amerika, a flor de Oberon em Sonho de uma Noite de Verão.)
Flaubert baseou-se numa pintura de Antão por Bruegel, o Jovem, onde abundam estranhas criaturas que volteiam a cabana do notório recluso. Também o seu livro valoriza as possibilidades artísticas das alucinações de Antão, seu enredo repleto de cenas concebidas por um autor no livre curso de seu ímpeto imaginativo. Talvez seja este o atrativo artístico de Antão: o paradoxo entre o compromisso eremita e a exuberância visual. Mas tivesse o próprio santo pintado, suponho preferir a arte abstrata, desvencilhada de um mundo que já não tenciona representar para encontrar-se na pureza de si — também o anacoreta controla-se ao anular as circunstâncias, num exílio autorreferente em contacto apenas com o eterno: ele é tanto abstrato quanto abstraído do mundo. Mas não é um quadrado — humano contraditório, Antão é assolado não só por miragens externas, mas também por impulsos íntimos, recalcados em sua vida de privações: se no misticismo deus pode ser visto como princípio interno, também o diabo é fúria de dentro. Como um círculo abstrato seduzido por imagens figurativas de maçãs e luas cheias, também Antão questiona o seu exílio ante a exuberância da vida.
Mas poderia o tumulto espiritual ser um caminho à epifania? A obra The Temptation of Saint Anthony, de Tim Rollins/KOS, consiste numa série de gravuras compostas por duas técnicas principais: (1) a base sempre igual é uma fotocópia de uma passagem de excepcional violência, sobreposta então por (2) manchas gráficas abstratas, todas únicas, em água-tinta. O místico eremita percebe o desalinho entre os planos, e busca ajustar a sua errante conduta para encontrar canais ainda abertos ao divino — esta obra traduz tal condição fundamental. A base literária é a sua dimensão superior, o verbo eterno que não altera-se: o uso da fotocópia, com sua precisão técnica e infinidade reprodutiva, outorga à série a impecável sucessão da mesma imagem, como se transcendida do tempo. Já a camada de cima é terrena, pertence às circunstâncias: a técnica da água-tinta favorece um sombreado (como os matizes de um espírito confuso) por Rollins/KOS manipulado em técnicas experimentais, quase automatistas, explorando, portanto, a imperfeição e o descontrole inerentes ao humano. Cada mancha é o resultado de um gesto distinto, é sempre única e nunca impecável, espontânea, porém contraída, e desenvolve a sua própria relação com o texto por detrás, violentando-o talvez como meta-comentário ao conteúdo da passagem selecionada. A reduzida escala gráfica das obras, centralizadas em páginas brancas, reforça o exílio do místico, a sua obsessão, e a imanência de sua peleja.
A Tentação de Flaubert foi também ilustrada por Odilon Redon em litografias que decerto influenciaram Rollins/KOS — o simbolismo de Redon alça as cenas ao interstício entre o figurativo e o abstrato, em manchas gráficas vanecendo as formas das coisas. Mediante as distintas abordagens artísticas à história de Antão, consegue-se mesmo tanto representar o sucessivo isolamento do santo quanto traçar o desabrochar histórico da arte abstrata no ocidente: (i) Bruegel e Bosch apresentam-nos um santo figurativo situado em paisagem concreta embora fantasiosa, (ii) já Redon assombra-o monocromático em quartos fechados ou espaços abstraídos, (iii) enquanto Rollins/KOS enfim favorecem talvez o íntimo do santo, nos fluxos abstratos da eterna peleja de forças primevas. Há um rompimento artístico, portanto, entre Redon e Rollins/KOS: os últimos já não representam cenas do enredo, preferindo explorar visualmente os seus temas. “Não ilustramos os textos”, diz Rollins. “É sobre criar um correspondente visual. Algo que capte o espírito do texto, ou que se relacione com as suas questões. Somos literários, mas não literais”.[3] Redon respeita o texto, inclusive o seu aspecto físico: ocupa páginas em branco. Já Rollins/KOS assumem a indulgência moderna e sobrepõem-se às palavras escritas, criando assim uma tensão que acentua o violento dilema do anacoreta.
Seria um acervo de sentimentos? Sendo abstrata, portanto antinarrativa, esta série contraria a própria ideia de literatura a um nível mais abrangente. Mas também o romance moderno, com seu ímpeto realista, embora não abandone a história, ainda assim aproxima-se da autorreferência, buscando por vezes não significar nada além de si mesmo. Proust admirava a objetividade de Flaubert, que sonhava, sabe-se, em escrever uma história sobre nada — um livro indiferente, forma pura, sem comentários nem argumentos, realizado em sua própria aparição. Na Tentação ele está por inteiro no campo simbólico, mas também a heroica simplicidade de Antão contraria tanto a riqueza poética da narrativa quanto os seus inúmeros argumentos teológicos. De resto, a sucessão frenética de eventos acaba por esvaziar o seu conteúdo, como ensina-nos a teoria do sublime: um excesso de forma gera confusão mental — e não seria o acúmulo de imagens uma forma de encantar-nos ao além do intelecto, gerando uma prosa que negligencia a informação em prol da estética? Herberto Helder preferia os romances que chamava de máquinas interrogativas. Respostas são secundárias — perguntar é vital. Antão a todo tempo questiona a validade de suas visões. “Haverá mesmo sobre a terra semelhantes coisas?”, cogita ante o relato de Apolónio. A pergunta nasce de si, da dúvida perante o mistério da vida, abrindo o mundo à reflexão. Uma resposta não deve ser enunciada, mas sentida, para que não encerre a pergunta. No livro, as realizações mais memoráveis de Antão não são compreendidas, mas sentidas, em momentos de grande beleza. Rollins não raro falava na beleza como uma baliza à arte política, para escapar do ativismo prescritivo, da informação jornalística. Rejeitava o que via como a grosseria caricata de Georg Grosz em prol do salutar equilíbrio de William Morris. “Como fazer um trabalho de arte política que não seja negativo, mas lindo, e belo? É muito mais difícil.”[4] Há um pendor pedagógico em toda a sua prática, embora as obras não sejam didáticas — melhor que ensinar o espectador é dar-lhe a oportunidade de, ele próprio, ensinar-se.
A exposição The Temptation of Saint Anthony, de Tim Rollins & KOS, é um projeto de UPPERCUT e está patente no Buraco até dia 6 de dezembro, dia em que decorrerá a primeira sessão de Serviço Educativo, desenhada por Lea Managil.
[1] Flaubert, Gustave. (2023). A Tentação de Santo Antão. Minotauro, p. 76.
[3] Id., ibid.
[4] Id., ibid.