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Uma doce repulsa: Bartolomeu Santos, no Espaço Cultural das Mercês
DATA
13 Out 2025
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AUTOR
Tomás Camillis
Fossemos nós o lobo da antiga história, escusados estaríamos em compreender a mostra THREE LITTLE PIGS, AND EVERYBODY ELSE não como um exame das plasticidades grotescas de órgãos revirados e viscosas estruturas, mas como um acervo de guloseimas dispostas em espaço asséptico para reforçar o impacto de sua delícia — talvez contenham um hibridismo formal afeito tanto à abstração quanto à figuração, talvez promovam um abstracionismo cuja acentuada sugestividade estimule, também, alusões e reflexões concretas.
Feitas de esponjas, conservam uma macia aspereza ainda perceptível mesmo após a cobertura de epóxi, que lhes empresta um brilho capaz de matizar o repugnante em algo mais parelho ao confeitado, como um glacê que preserva o tenro conteúdo. Vejo, nestas obras, a influência de artistas como Belén Uriel e Mona Hatoum, que articulam a ambiguidade de atraentes e repulsivos objetos, numa estranheza que suspende um sentido imediato. Polir o perturbador é habitar este espaço onde convergem, também, a aversão gustativa e o interesse fúnebre da gastronomia de figuras como Brillat-Savarin ou Grimod de la Reyniére. Mas se o banquete é um ritual de excessos, a mostra de Bartolomeu Santos dispõe-os numa concisão clínica. Pontuando as obras neste espaço hospitalar, pois coberto de papel branco, remete-nos a um estado de assepsia que a tudo envolve numa aura analítica. As obras acabam, assim, por também estimular a placidez do espectador perante a estranheza do objeto.
Seria esta, também, uma placidez metafísica? Os arúspices romanos costumavam inspecionar órgãos de animais sacrificados, divinando os desígnios divinos. Também os mesopotâmios exploravam tais presságios, no estudo dos formatos do fígado, e nos arredores de Piacenza descobriu-se um diagrama etrusco como guia oracular à análise dos fígados das ovelhas. Se o universo é um imenso corpo onde todas as partes conservam harmonia, então também as vísceras denunciam o panorama geral. Seria o cromatismo heterogéneo destas peças, pois de superfícies compostas pela sobreposição de manchas tonais e texturas distintas, uma alusão à paisagem cósmica, com suas constelações e nebulosas?
Platão não pareceu devotar interesse a tais práticas anatómicas, mas também apostava, à sua maneira, no vínculo direto entre o íntimo e a verdade universal — tanto o intelecto quanto o seu mundo das formas seriam afeitos à geometria, disciplina de construções racionais cuja perfeição inexiste na natureza. A obra THE WAY HOME, com sua estrutura de geometria ascensional, é como uma escada de sólidos platónicos, ainda incipiente: de posicionamento desencontrado, e envoltos numa capa orgânica, possuem uma precariedade artesanal, lassa ou espontânea, que tanto sintetiza o íntimo místico no íntimo orgânico, como se do fígado extraíssemos um cubo de metal polido, quanto encoberta a suposta perfeição no precário, que protege-a ao anula-la (também a obra PIECE, um círculo coberto por tecido costurado, possui semelhante abordagem). THE WAY HOME é também uma linguagem platónica, para quem todo conhecimento era antes uma lembrança que nos regressaria ao lar metafísico, onde habitávamos, antes do parto. Poderia, também, aludir à história dos porquinhos obrigados a mudar de moradia pelos sopros do predador. Quase todas as obras, de fato, aludem ao tema do armazenamento, ou do transporte. Ao além das caixas envelopadas já mencionadas, há a inocente mochila de (HOW) WE LOCKED OURSELVES OUT OF OUR MINDS, única figuração explícita da mostra, e o movimento, decadente e retardado, do corrimento bilioso de DELAY. Outras, ainda, dobram-se sobre si, nesta lógica do portátil não ao todo distinta da estrutura de nossos órgãos, que recolhem a própria expansividade na mais compacta forma, encapsulando seus sulcos e vincos, para então exibir, na película externa, uma impecável lisura.
E caso cortássemos tal lisura, ou mesmo se abríssemos a nossa própria epiderme, lá veríamos não o dentro absoluto, mas um acervo de novos foras, que abertos seriam para encontrar outras estruturas, sempre menores, sempre externas. Em VAST AS PLEASURE, mas sobretudo em THE FLOOR WAS YOURS, há uma interessante exploração das possibilidades plásticas de tal gesto, confundindo o dentro e o fora, ou o direito e o avesso, em estruturas contraídas numa labiríntica sinuosidade, como uma garrafa de Klein cujo plano projetivo foi improvisado por um organismo de inteligência involuntária. Também nas costuras artesanais, em algumas das obras acentuadas, sugere-se o motivo da cicatriz, nada mais que o costurado aflorar da carne interna sobre a pele externa.
Mais repugnantes florações são as doenças. Seu assombro infamiliar não exclui o sobrenatural, pois máxima externalidade brotando de dentro, corroendo a mecânica lustrosa dos órgãos sadios numa cinzenta espontaneidade. Pois se o corpo jovem é como uma máquina, a doença é o seu imprevisto, um rompante expressivo que o precariza num gesto, inclusive, favorável à glutonia em seu estado mais mórbido, como na patologia induzida do foie gras ou na decomposição dos queijos fúngicos. Se outrora o fígado sadio foi fonte de divinação cósmica, seria o nosso desejo de adoentá-lo em prol do paladar um indício de nosso hedonismo atual? Transformar o útil em supérfluo vital é uma das alquimias da arte, tornando-nos todos em estetas atraídos à repulsiva plasticidade de uma doença bem trabalhada, assim como a gastronomia excede a nutrição em glutonia, oferecendo-nos a dádiva da gordura, símbolo máximo do domínio humano sobre o ambiente. Não seria toda arte uma gordura existencial?
Salvos os porquinhos, poderíamos também relembrar a história de Hansel e Gretel, na casa de doces que engorda as carnes de crianças destinadas ao forno da velha canibal. Os contos de fada, fantásticos e absurdos, não só negligenciam os princípios do realismo literário, que preservam a verosimilhança das causas e efeitos, como incentivam uma suspensão de sentido imediato — ao invés de uma lógica plausível, preferem o impacto das imagens, o drama das situações e a sugestão simbólica. Tais preferências são aqui mantidas, tanto conservando a estranheza do relato original quanto expandindo a nossa relação com as obras. Mesmo porque as artes plásticas não são manifestações temporais, como a literatura ou a música, mas espaciais: organizam-se no espaço e apresentam-se ao espectador numa simultaneidade imediata. Organizadas desta maneira, as obras relacionam-se à história de forma autónoma, e não como meras ilustrações. São mais uma coleção de imagens e sensações que, ao desrespeitar a sucessão narrativa que outorga um peso específico a cada coisa, ampliam a sua ressonância. Neste sentido, é compreensível a escolha pelo cubo branco, que afasta as obras de circunstâncias externas, mesmo que os estalos emitidos a cada passo nos lembrem da concretude do corpo, constrangendo-nos também ao papel do lobo, cujo silêncio visa surpreender os porquinhos.
Outro aspecto da inquietude presente nos contos de fada provém do seu vínculo entre inocência e terror, como se fossem histórias manifestas pela psique de um sábio infante ainda ignorante ao peso da violência, inserindo-a nos mais inusitados cenários, realçando-a, portanto. Também assim são certos retratos de Francis Bacon, escreve John Berger, que o relaciona com antigas animações de Walt Disney: em ambos, a ingenuidade dos personagens não atenuaria a violência que os deforma, mas justo acentuaria a hostilidade do ato. Também nas obras de Bartolomeu Santos há um certo teor de candura e leveza que acaba por adensar a sua hostilidade alienígena. Seu aspecto vítrico, embora adicione à sua delicadeza, quando aliado a tais torturadas anatomias e florações viscerais, confere-lhe um desconcertante cinismo.
A exposição THREE LITTLE PIGS, AND EVERYBODY ELSE, de Bartolomeu Santos com texto de Rui Gueifão, está patente no Espaço Cultural das Mercês até dia 15 de outubro.
BIOGRAFIA
Tomas Camillis é autor e pesquisador baseado em Lisboa. Escreve narrativas fictícias e ensaios no contacto entre arte, filosofia e literatura. Possui mestrado em Teoria da Arte pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Nos últimos anos participou de pesquisas, lecionou cursos em institutos culturais, auxiliou na organização de simpósios e publicou em revistas especializadas. Atualmente colabora com o Serviço Educativo do MAC/CCB e com a revista Umbigo.
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