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Luminosa Anestesia: Guilherme Parente na Fundação Carmona e Costa
DATA
15 Dez 2025
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AUTOR
Tomás Camillis
Já na primeira obra da mostra Mistério e Revelação, curada por Nuno Faria na Fundação Carmona e Costa, percebe-se como Guilherme Parente articula o intervalo entre a evocação simbólica e a construção abstrata, entre a máquina mental e o espaço lúdico, entre um augusto equilíbrio e a implícita inquietude.
Na diminuta imagem penso testemunhar um imenso morcego que expande as suas asas sobre uma árida paisagem. Nas costas da serra dourada desponta a silhueta da cidade que logo assolará com sua inconcebível malvadeza. Ou talvez apenas um palácio ecoando a silhueta de seu proprietário, o colérico arcanjo que vem repousar após determinada aventura metafísica. Ou mesmo uma paisagem desprovida de deuses e animais, tão-só o rolar de dunas morosas e montes arenosos que atingem, enfim, duas montanhas vermelhas longínquas como espelhos do poente. Ou, quem sabe, nada salvo um jogo de planos e contornos e cores e texturas que negligencia a representação pictórica para reafirmar a realidade plástica da obra.
Já na primeira obra da mostra Mistério e Revelação, curada por Nuno Faria na Fundação Carmona e Costa, percebe-se como Guilherme Parente articula o intervalo entre a evocação simbólica e a construção abstrata, entre a máquina mental e o espaço lúdico, entre um augusto equilíbrio e a implícita inquietude. Seu cromatismo e gestualidade, dois de seus principais atributos, são ainda mais explicitados numa série que principia na segunda pintura exposta, com um quadriculado de roxos análogos e pontos focais rabiscados em amarelo, sua cor complementar. Na terceira, flutuam num escuro espaço pictórico que apenas reforça os pontos focais. Na quarta, adquirem profundidade — as formas antes abstratas tornam-se agora figuras numa paisagem, talvez edifícios que levitam ao lado de uma imensa estrutura erguendo-se ao além. Nesta sucessão evolutiva vislumbramos o fôlego com o qual Parente explorava as relações entre o figurativo e o abstrato. Nele, a dimensão física da pintura nunca é sublimada em prol da imagem.
Mais que o corretivo do rigor, talvez as suas obras nasçam de uma satisfação pelo processo aberto, que assimila a espontaneidade do rabisco e o êxtase da cor. Quase sempre, o artista reduz os elementos ao seu aspecto plástico. Cabeças são gotas de impastos, corpos são gestos indolentes. Sendo o suporte madeira, explicita-se os seus vincos em linhas curvas. Uma mesa é um quadrado chapado, uma planície é um retângulo, o feixe de luz um espirro de tinta, as nuvens negligentes rodopios em azul. Já em obras abstratas colore as formas geométricas em expressivos rabiscos, reafirmando a imperfeição do punho. O seu mundo é material, para não ser real — em paisagens mais idiossincráticas, dispõe monumentos sombreados em paisagens chapadas, gerando uma incoerência que abstrai a representação. Ou seja, seu lúdico é também metafísico, pois preocupado com a essência ontológica de cada aspecto de uma obra, ela própria, entendida como a construção de formas e cores em ritmos suaves e planos gestuais. Este ser o que se é, de veicular aquilo no que se acredita a cada momento, sem ironia ou sarcasmo, é também um aceitar do processo enquanto experiência artística, buscando realizações apenas possíveis a um desenho por vezes quase automatista. Assim, alcança uma honestidade artística que equilibra sugestão pictórica, realidade física e sinceridade processual.
Mas o que acontece nestes planos e linhas flutuantes enfatuados por sua própria artificialidade? Figuras incorpóreas como sombras coloridas vagueiam dentre pálidos monumentos, chapéus de mágicos conificam-se ao pé de sólidos longilíneos ao além edificados. Colunas de fumaça serpenteiam árvores em trajetórias absurdas enquanto monstros sonolentos exibem suas silhuetas. Há também uma dimensão simbólica aqui, neste mundo leviano onde tudo é também encenado numa concisão quase bizantina — mas Parente não privilegia a comunicação, pois o seu temperamento surreal atrasa o sentido. Parente acolhe o aspecto despretensioso, jovial do pop. Mas a sua infantilidade não é condescendente, nem sua leveza é singela. Se o pop costuma ser estridente e comunicativo, em Parente persevera um silêncio que é tanto uma ausência de interioridade quanto uma suspensão de significado. Penso em De Chirico, seu mundo-palco povoado por manequins desprovidos de interioridade, ou agência. Também as figuras de Parente são como manequins — oleosas irradiações destituídas de detalhes, mas exultantes em sua distante realidade. Parecem estar no princípio de sua formulação. Mas as coisas que nascem não advém do nada. A sua génesis contém a memória de outra coisa, a genealogia que determina o futuro. De onde vem, esta nossa lembrança das coisas? As pinturas de Parente sugerem narrativas nunca concretizadas, tornando-se mais uma exploração de arquétipos que vagueiam em paisagens indistintas, como os símbolos de um inconsciente coletivo. Entre a memória de um passado formador e a sua articulação numa sensibilidade infantil onde tudo está, ainda, em vias de tornar-se, vêm-me outra imagem que talvez traduza a sua pintura de maneira mais genuína: uma agradável demência no fim da vida.
Pois talvez as suas imagens não se estejam formando, mas desfazendo-se. Embora a relação entre os eixos verticais e as zonas horizontais outorgue à cena um equilíbrio compositivo, o tosco simbolismo atrase a interpretação, os matizes alegres estimulem um senso de felicidade geral, e a ausência de peso das figuras negligencie a gravidade, ainda assim suas obras são ameaçadas pelo fantasma da dispersão. Nas pinturas de Parente não há nada perecível, mas tudo pode desaparecer num súbito tropeço da memória. Esta ameaça do oblívio é, por vezes, sinalizada em suas paisagens, nas colunas de fumaça que despontam longínquas, na flacidez das falésias, na pureza e solidão dos monumentos, nas atrofiadas silhuetas das figuras, mas creio ser melhor explicitada no próprio vazio de suas paisagens, e na intensidade cromática de suas cenas.
Também as suas cores privilegiam o impacto visual à veracidade do realismo. Por que não pintar uma veia da falésia de borgonha, outra de amarelo e outra ainda de verde? Mais imediato que reproduzir sombreados reais é entender como estas cores se relacionam no plano cromático. Regidas pela sensação, emancipam-se da cena para promover a sua própria realidade, em construções cromáticas de matizes saturados com alto valor tonal, contribuindo tanto ao encanto de uma leviana alegria quanto ao alerta de uma ténue angústia. Parente explora todo tipo de princípio colorista, seja neutro ou monocromático, complementar ou análogo — não ignoro que pinte paisagens esverdeadas para melhor explorar o impacto do vermelho. Na mostra percebe-se, em algumas obras abstratas, como se serve de exercícios cromáticos à semelhança de Josef Albers, influência que talvez tenha sugerido uma abordagem mais experimental à cor, como quando contrasta um mártir de corpo ciano com o seu halo amarelo, ambos cores primárias CMYK de uma pujança quase incómoda, num exercício que alude o Double Homage to the Square, de 1957. Parente também se serve de semi-tons, matizes entre o roxo e o vermelho acompanhados de sombreados quase laranjas depois entrelaçados com verdes, amarelos e azuis, ou azuis roxeados ladeando amarelos e laranjas, numa expansão do que se entende pela relação de complementares divididos, na teoria das cores. Por vezes também salpica elementos em cores primárias e secundárias que não se tocam, mas compõe um sistema de amarras pictóricas. Como também faziam os mestres venezianos, articula cor através da sobreposição entre elementos verticais no primeiro plano com paisagens que se desenrolam horizontais — longas formações geológicas de sombreado multicor ou vegetações vermelhas criam distintas relações cromáticas com as zonas coloridas em verdes, amarelos, roxos e azuis.
As cores não existem em isolamento, mas sempre em interação, já dizia um Albers por Delacroix influenciado. Em Parente há o ensaio de interações sensuais entre os distintos elementos para que se construa com o espectador uma abordagem menos categórica da vida, onde cada coisa irradia a sua influência na expectativa de amaciar as silhuetas alheias, de testar articulações espontâneas em meio à dispersão natural. Talvez por isto pinte chapéus no chão e monumentos solitários — para experimentar a realidade das coisas cuja presença não é percebida, mas sentida num golpe de inexplicável intuição.
A exposição Mistério e Revelação, Pintura e Desenho 1960-70, de Guilherme Parente, pode ser visitada na Fundação Carmona e Costa até dia 20 de dezembro.
BIOGRAFIA
Tomas Camillis é autor e pesquisador baseado em Lisboa. Escreve narrativas fictícias e ensaios no contacto entre arte, filosofia e literatura. Possui mestrado em Teoria da Arte pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Nos últimos anos participou de pesquisas, lecionou cursos em institutos culturais, auxiliou na organização de simpósios e publicou em revistas especializadas. Atualmente colabora com o Serviço Educativo do MAC/CCB e com a revista Umbigo.
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