article
COSMO/POLÍTICA #3
DATA
05 Mar 2019
PARTILHAR
AUTOR
José Pardal Pina
O Mundo Começou às 5 e 47 e com ele a promessa de um novo dia. O Mundo Começou às 5 e 47, com o rasgar do sol no horizonte e o alvor de uma nova esperança. O Mundo Começou às 5 e 47, em…

O Mundo Começou às 5 e 47 e com ele a promessa de um novo dia.

O Mundo Começou às 5 e 47, com o rasgar do sol no horizonte e o alvor de uma nova esperança.

O Mundo Começou às 5 e 47, em 1946, com uma peça Luiz Francisco Rebelo, e uma reflexão sobre a posição do homem no mundo, da sua condição e as possibilidades da sua volição política – na época de viragem do pós-guerra. Em Portugal, contudo, essa viragem foi tão só parcial e a vontade de uma revolução pela liberdade experimentava-se tíbia, mas resolutamente, nas entrelinhas de um livro, nas manchas de uma tela, nos intervalos e experimentalismos de uma peça de teatro.

Décadas depois, O Mundo Começou às 5 e 47 com a contemporização desta mensagem e segundo a perspetiva crítica e artística de Hugo Canoilas, Miguel Castro Caldas e Tatiana Macedo. E é partindo desta peça de Rebelo, e nesse cruzamento de tempos e visões, que surge a terceira exposição do ciclo COSMO/POLÍTICA, no Museu do Neo-Realismo, com a curadoria de Sandra Vieira Jürgens e Paula Loura Batista.

Hugo Canoilas é talvez o artista que articula toda a exposição, não exatamente pelo conceito da obra, mas pela forma que ganha no espaço. Nesta obra-instalação, Canoilas vai ao encontro da luta de classes retratada e efabulada por Rebelo e da cesura que opera na sociedade. Fazendo recurso da sátira e da crítica vindas de O Mundo Começou às 5 e 47, Canoilas acaba também por aludir à condição precária do artista contemporâneo e de uma comunidade artística também ela dividida por um classismo manietado pelo sistema capitalista. As calças rebaixadas e sarapintadas no chão são um assumido autorretrato de alguém que se vê diminuído e desnudado trabalho após trabalho; os ténis na gaiola negra, uma liberdade capturada, ou, na interpretação do artista, uns pulmões enjaulados; o grito na tela é uma voz suprimida, uma ira que não vibra na atmosfera.

As fotografias de Tatiana Macedo balizam o gesto total de Hugo Canoilas e remetem para um cruzamento de intenções. Ou seja, revelam de que forma é que as intenções de Rebelo vão ao encontro das intenções e da prática artística de Macedo. Mediante o vasto arquivo fotográfico e fílmico que tem juntado ao longo dos vários projetos e viagens, a artista procura nos diálogos da peça preocupações que estão igualmente presentes no seu trabalho, ecos e fluxos (quaisquer que sejam) que se encontram de parte a parte. De igual modo, a artista acaba por sublinhar brevemente o papel secundário que a mulher tem na obra de Rebelo. De facto, homem, aqui, cinge-se ao sexo masculino. E qualquer revolução que venha será por ele conduzida. A mulher é nada mais que um veículo de vontades e ações alheias, alguém que serve apenas para dar à luz o homem novo.

Por sua vez, Miguel Castro Caldas baseia a sua performance exclusivamente na peça. Alicerçado na visão benjaminiana e brechtiana do teatro, Caldas trabalha a metalinguagem escondida na peça e a natureza ambígua da mesma, o que há de encenado e de improvisado, e os eventuais limites da linguagem e da autenticidade. Na perspetiva experimental que O Mundo Começa às 5 e 47 propõe, o autor chamar ao palco uma espetadora, exigir dela uma ação que, afinal, está programada e já incluída no texto, acaba por prefigurar um problema de difícil solução e aceitação. Afinal, o que se faz é substituir a voz da espetadora pela do autor, silenciando-a. Quem é quem para falar em nome de quem? Como podemos dar voz a alguém quando, no final, e na verdade, é a nossa própria voz que fica escrita, desenhada, registada? São estas as tensões e preocupações que Caldas imortaliza em Folheação (primeiro em jeito de performance e, depois, no objeto cénico procedente), mais concretamente na questão de “dar voz” a algo ou alguém. Gravada na pedra, como lápide ou epitáfio, “dá-me voz” configura o problema fundamental e original da arte a favor de uma revolução – uma voz, neste caso, capturada quando as vozes são, por natureza, incapturáveis.

O que resulta da exposição é uma negociação de visões e interpretações várias, de artistas que procuram driblar através da arte as grandes questões da política e da democracia e mediante um desfasamento histórico ou cronológico.

Porque se O Mundo Começou às 5 e 47, não é tão certo e preciso saber-se quando o seu fim.

(Até 31 de março, no Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira.)

BIOGRAFIA
José Pardal Pina é Editor Adjunto da Umbigo desde 2018. Formação: Mestrado Integrado em Arquitetura pelo Instituto Superior Técnico, Universidade de Lisboa; Pós-graduação em Curadoria de Arte pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa. Curador dos projetos Diálogos (2018-2024) e Paisagens (2025-) na Umbigo.
PUBLICIDADE
Anterior
article
Carlos Bunga
04 Mar 2019
Carlos Bunga
Por Bárbara Valentina
Próximo
article
Além deste Solitário Carrossel, na Galeria 111
06 Mar 2019
Além deste Solitário Carrossel, na Galeria 111
Por Carla Carbone