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Encenar é Amar: to love and devour, de Tolia Astakhishvili
DATA
13 Nov 2025
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AUTOR
Tomás Saraiva
Durante toda a minha vida tive o sortudo gosto de partilhar a casa com a minha avó. Como na maioria das casas de avó, as coisas e coisinhas, que estão sempre a ser descobertas a pouco e pouco, reinam todo o lugar, constroem e acabam por se tornar, elas próprias, o espaço que habitam. Ao longo dos anos, estes dispositivos de memória que vivem pela vitamina mágica do anacronismo foram formando a minha estrutura, a aparecer e a ir desaparecendo, até eu próprio ser o lugar que habito. Assim me senti em love and devour da artista georgiana Tolia Ashakhishvili - curada por Hans Ulrich Obrist, no novo espaço já estreado, mas ainda por renovar, da Fundação Nicoletta Fioruci, em Veneza -, uma exposição que invoca a memória lembrando a importância do esquecimento.
Não existe nada que indicie a exposição no bairro de Dorsoduro além de uma tira de fita de pintor com o título escrito à mão, colada no topo da campainha do edifício, que escapa ao mais atento dos olhares — qual palazzo qual quê? Após a descoberta da entrada, os passos são enunciados pelo estalar dos detritos, pós e poeiras acumulados, como num espaço em permanentes arranjos, submisso às vicissitudes do tempo ou num lugar–não lugar em trânsito de identidades1. Talvez os três em simultâneo, camada por camada. As intenções da artista pareciam estar em paralelo com a natureza do edifício, e a identidade e a autoria têm um papel fundamental no desenvolvimento do trabalho de Tolia Ashakhishvili, que trabalha com vários artistas, incluindo familiares, amigos e desconhecidos, para criar relações com uma criação que lhe escapa ao controlo, fomentar novas histórias ou ir esquecendo aos poucos.
São estas tipologias arquitetónicas que servem de substância ao seu trabalho, de uma maneira que se aproxima totalmente dos processos escultóricos convencionais de adição e subtração, empregando-os identicamente aos desenhos, fotografia, objetos encontrados, vídeo ou som para criar os seus próprios lugares. Várias vezes, Tolia Ashakhishvili cria espaços inseridos noutros, limbos entre tempos num âmbito semi-artifical. Mas aqui não. Ao viver os primeiros meses deste ano neste sítio, o trabalho da artista adquiriu uma força meticulosamente natural - como o único tipo de luz que ali servia de iluminação - que permitiu ao seu trabalho a estrutura elementar de uma estranha familiaridade espacial que raramente acontece. A exposição é onde está. Uma das coisas especiais desta exposição é precisamente essa: a intenção da retirada total de uma coisa que é normalmente uma plataforma limitadora do fruir, para ali colocar uma horizontalidade tal, seja na direção do espaço ou na direção de quem o visita e nos seus sentidos, que se forma um ambiente espontâneo, desafetado e, sobretudo, instintivo. Achava-me o indivíduo do Diagrama da Visão Extendida, de Herbert Bayer, sempre no centro de tudo, independentemente do lugar onde estivesse. Cada sítio que olhava permitia-me olhar para tudo ao mesmo tempo ou, recuperando o texto da folha de sala (com a referência de Obrist a Deleuze), colocava-me no meio das coisas, mas no centro de nada.
O momento de incapacidade de distinção entre o que já ali jazia e o que Tolia Ashakhishvili ali colocou é o aval para nos sentirmos em casa, uma quebra da quarta parede das exposições. Pareceu-me que, afinal de contas, nós somos a exposição. Nós, o visitante, estamos e somos ali, à descoberta dos pormenores que estão constantemente por baixo dos nossos narizes, as coisas e coisinhas que, por fim, importam. Ao mesmo tempo, como que numa contradição à decadência cénica do edifício, é impossível deixar de pensar no protesto contra o esquecimento, do qual Obrist é o primeiro defensor. Fotografias aparentemente familiares, óculos, elementos de decoração, confissões íntimas escritas nas paredes nos sítios mais recônditos são, apesar de tudo, conhecidas pelo esquecimento…? É por isso que, ao compreender esta exposição como um lugar real dentro da cidade e não como um conjunto de objetos que formam uma qualquer situação que se fecha em si mesma, prefiro manter a alusão que tem sido esta partilha. Não posso, porém, deixar de recordar três breves momentos que são a exceção à regra.
O primeiro, no piso térreo, é um filme da artista em conjunto com James Richards, I Remember (Depth of Flattened Cruelty), de 2023. Por alguma razão - que não consigo ainda explicar -, as desconfortáveis colagens de espaços, públicos, liminares e vazios, reminiscentes de M. C. Escher, mas com traços de um quentinho, impressionaram-me. Pelo meio, ouvimos uma passagem de I Remember, de Molly Drake, que define a intenção de toda a composição - aqui deixo um convite para que escutem esta canção, marcada em mim como a melodia que se ouve ao fundo da memória.
Depois, no primeiro piso, numa antiga casa de banho com o sistema de canalização exposto pela demolição das paredes, levada a cabo por vontade da artista, o momento-chave foi realmente uma janela aberta, que dava para um pequeno varandim. Não sei se estaria assim intencionalmente, mas o burburinho natural que se ouvia vindo do exterior era trazido para dentro da sala, invadindo-o e reverberando por ali. Veja-se a epítome! Criou-se uma nova dignidade, uma ponte, que atravessará mais do que canais… O último momento, a par deste, é a instalação I love seeing myself through the eyes of others, 2025. Em conjunto com Dylan Peirce, construíram uma grande box translúcida com silhuetas de elementos que nos remetem para um teatro de sombras complementado com sons captados em cafés e outros espaços públicos, um burburinho misturado com o tilintar de talheres. A artista decidiu não permitir o acesso ao interior para preservar a nossa capacidade de imaginação, deixar um pequeno fragmento de algo que nos dá um bilhete para outro lugar. A ponte que leva a exposição para fora.
O trabalho de Tolia Ashakhishvili acontece para lá de si, vem para o nosso lado.
Não esquecendo, Hans Ulrich Obrist entende-se como um exhibition-maker (o famoso Ausstellungsmacher, de Harald Szeemann). Olhando para a exposição de um ponto de vista curatorial, há de surgir a questão sobre como lidar com um corpo de trabalho de processos que se adequam tão bem ao espaço proposto. De forma resumida, a sua missão é a de cúmplice. De Szeemann, esse é o papel fundamental da prática curatorial: ser cúmplice dos artistas, muito antes de qualquer outra coisa. Ser, de facto, um intermediário na tríade artista – objeto – público, substancialmente ágil, que se movimenta e que é atuante, até porque, voltando a Szeemann: encenar é amar.3
Por fim, termino estas linhas com Rémy Zaugg:
O lugar da obra e do ser humano não é na Acrópole. Nem é no parque idílico da cidade. É na vida quotidiana do ser humano. É no bairro onde ele compra o seu pão e a sua carne, pois ir ao lugar da obra e do ser humano é um ato tão comum e essencial quanto ir apanhar um autocarro4.
A exposição to love and devour, de Tolia Ashakhishvili, está patente até dia 23 de novembro de 2025, na Fundação Nicoletta Fioruci em Veneza.

1. O edifício de dois andares que remonta ao séc. XV — que virá a ser o novo espaço da Fundação Nicoletta Fiorucci após as remodelações — passou por diversas mudanças. Foi um orfanato, serviu de estúdio-residência ao artista italiano Ettore Tito na década de 1920 e ainda foi o estúdio de arquitetura de Angelo Scattolin, na década de 1930.
2. Tolia Ashakhishvili e Olesia Shuvarikova, to love and devour: a conversation with Tolia Ashakhishvili, 2 de setembro de 2025: https://flash---art.com/2025/09/to-love-and-devour-tolia-astakhishvili-in-conversation-with-olesia-shuvarikova%EF%BF%BC/
3. Harald Szeemann, To Stage is to Love in Harald Szeemann: Selected Writings (Getty Research Institute, 2018), pp. 346.
4. Rémy Zaugg, The Art Museum of My Dreams or A Place for the Work and the Human Being, (Sternberg Press, 2013), pp. 59.

BIOGRAFIA
Tomás Saraiva (n. 2002) é licenciado em Ciências da Arte e do Património pela Faculdade de Belas-Artes de Lisboa e mestrando em Estudos Curatoriais no Colégio das Artes da Universidade de Coimbra. Entre a pintura e a curadoria, conjuga o pensamento artístico que tem vindo a desenvolver com os seus valores curatoriais, seja a solo ou em coletivo. Tem realizado e participado em diversas exposições a nível nacional e internacional.
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