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Entre a memória, a cura e o arquivo: VIDEOLOGIAS II – ANARCHIVAL FRAMES
DATA
24 Mai 2024
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AUTOR
Maria Inês Mendes
ANARCHIVAL FRAMES, exposição patente no espaço DuplaCena 77, constitui a segunda apresentação de VIDEOLOGIAS, um ciclo de quatro apresentações que procura interpelar o extenso arquivo filmográfico da estrutura DuplaCena, (re)lembrando obras e autores exibidos em produções passadas.

ANARCHIVAL FRAMES, exposição patente no espaço DuplaCena 77, constitui a segunda apresentação de VIDEOLOGIAS, um ciclo de quatro apresentações que procura interpelar o extenso arquivo filmográfico da estrutura DuplaCena, (re)lembrando obras e autores exibidos em produções passadas.

A exploração do arquivo revela, invariavelmente, um insaciável desejo de retorno e uma compulsão para o passado. O tempo passa enquanto o escrevemos e transforma-se antes que o consigamos deter. Há um sentimento de perda, que não é senão “a sensação do tempo que nos foge por entre os dedos e os olhos”. Sirvo-me das palavras de José Maçãs de Carvalho, no seu ensaio visual Arquivo e Dispositivo, que, inserido numa série de trabalhos sobre o conceito de arquivo, conduzirá a leitura das restantes obras da exposição. Afinal, o arquivo poderá ser cura para a perda: arquivamos para que, no futuro, relembremos o passado, e desarquivamos, no presente, para que ao passado possamos retornar.

Mas o arquivo não representa somente a possibilidade de rememoração. Em ANARCHIVAL FRAMES, o passado surge como uma forma particular de presente. Mais do que uma memória – um tempo encapsulado imutável –, o passado é invocado, torna-se imagem presente de factum na realidade. E o arquivo, por esta via de interpretação, não é senão uma mediação entre o passado e o presente, uma evidência deste encadeamento que não cessa de nos afetar.

É este o mecanismo de mediação que reside na obra My Father has a gun, de Ana Mendes. Este filme, desenvolvido a partir do álbum de família da artista, conta-nos a história do seu pai enquanto soldado na guerra colonial portuguesa, em Guiné-Bissau. Fotografia a fotografia, mergulhamos neste contexto histórico-político e nas razões que motivaram o seu silêncio. As imagens, já desgastadas pelo tempo, são, no entanto, tão atuais quanto os efeitos que produzem. A guerra colonial nunca será passado – não enquanto as suas sequelas se fizerem sentir. Em Teresa, um filme de Tânia Dinis, a lógica é semelhante. Sobreposta às imagens de uma vegetação tropical abundante, ouvimos uma narração sobre aqueles que partem e a saudade que deixam. O filme fala-nos sobre Teresa, cujo nome ficou gravado na língua do narrador (“My tongue still remembers your name”). Te – Re – Sa. Vladimir Nabokov escreveria: a ponta da língua toca no alvéolo, enrola e vibra até que estale. É uma palavra a três tempos: Te – Re – Sa. O gesto é decorado pelos músculos, tão presente, tão incontestavelmente corpóreo. Teresa nunca será passado – não enquanto o seu nome for lembrado.

Composta por nove obras outrora apresentadas, ANARCHIVAL FRAMES parte de um gesto anarquivista que, na ausência de outra explicação, poderá corresponder a uma fusão entre as palavras “anarquia” e “arquivo”. Refiro-me a uma sujeição do arquivo a um processo de entropia, uma produção consciente de um certo grau de desordem e de aleatoriedade. De facto, as obras da exposição não seguem uma linha temática ou cronológica evidente. Dispostas pelas várias salas do espaço DuplaCena 77, constituem, antes, uma constelação de memórias dispersas, que se cruzam, interpelam e sobrepõem. Nesta exposição, os filmes – que poderiam ser catalogados por tema, autor e período de tempo – são recontextualizados para que possam estabelecer relações entre si à luz da temporalidade do agora.

Ora, se arquivar é organizar o caos intrínseco à experiência humana, o remédio para uma ferida inata que é impossibilidade de conhecer, desorganizar o arquivo é evitar a estabilização dos significados e a estagnação no tempo. ANARCHIVAL FRAMES é, afinal, um exercício cartográfico, uma (re)invenção dos mapas do passado que nos conduzem, no presente do presente, para o futuro.

Com curadoria de Ana Rito e Hugo Barata, a exposição está patente até dia 25 de maio de 2024 no espaço DuplaCena 77.

BIOGRAFIA
Maria Inês Mendes frequenta o mestrado em Crítica e Curadoria de Arte na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Em 2024, concluiu a licenciatura em Ciências da Comunicação na Universidade NOVA de Lisboa. Escreve sobre cinema no CINEblog, uma página promovida pelo Instituto de Filosofia da NOVA. Realizou um estágio curricular na Umbigo Magazine e, desde então, tem vindo a publicar regularmente. Colaborou recentemente com o BEAST - Festival de Cinema da Europa do Leste.
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