ANARCHIVAL FRAMES, exposição patente no espaço DuplaCena 77, constitui a segunda apresentação de VIDEOLOGIAS, um ciclo de quatro apresentações que procura interpelar o extenso arquivo filmográfico da estrutura DuplaCena, (re)lembrando obras e autores exibidos em produções passadas.
A exploração do arquivo revela, invariavelmente, um insaciável desejo de retorno e uma compulsão para o passado. O tempo passa enquanto o escrevemos e transforma-se antes que o consigamos deter. Há um sentimento de perda, que não é senão “a sensação do tempo que nos foge por entre os dedos e os olhos”. Sirvo-me das palavras de José Maçãs de Carvalho, no seu ensaio visual Arquivo e Dispositivo, que, inserido numa série de trabalhos sobre o conceito de arquivo, conduzirá a leitura das restantes obras da exposição. Afinal, o arquivo poderá ser cura para a perda: arquivamos para que, no futuro, relembremos o passado, e desarquivamos, no presente, para que ao passado possamos retornar.
Mas o arquivo não representa somente a possibilidade de rememoração. Em ANARCHIVAL FRAMES, o passado surge como uma forma particular de presente. Mais do que uma memória – um tempo encapsulado imutável –, o passado é invocado, torna-se imagem presente de factum na realidade. E o arquivo, por esta via de interpretação, não é senão uma mediação entre o passado e o presente, uma evidência deste encadeamento que não cessa de nos afetar.
É este o mecanismo de mediação que reside na obra My Father has a gun, de Ana Mendes. Este filme, desenvolvido a partir do álbum de família da artista, conta-nos a história do seu pai enquanto soldado na guerra colonial portuguesa, em Guiné-Bissau. Fotografia a fotografia, mergulhamos neste contexto histórico-político e nas razões que motivaram o seu silêncio. As imagens, já desgastadas pelo tempo, são, no entanto, tão atuais quanto os efeitos que produzem. A guerra colonial nunca será passado – não enquanto as suas sequelas se fizerem sentir. Em Teresa, um filme de Tânia Dinis, a lógica é semelhante. Sobreposta às imagens de uma vegetação tropical abundante, ouvimos uma narração sobre aqueles que partem e a saudade que deixam. O filme fala-nos sobre Teresa, cujo nome ficou gravado na língua do narrador (“My tongue still remembers your name”). Te – Re – Sa. Vladimir Nabokov escreveria: a ponta da língua toca no alvéolo, enrola e vibra até que estale. É uma palavra a três tempos: Te – Re – Sa. O gesto é decorado pelos músculos, tão presente, tão incontestavelmente corpóreo. Teresa nunca será passado – não enquanto o seu nome for lembrado.
Composta por nove obras outrora apresentadas, ANARCHIVAL FRAMES parte de um gesto anarquivista que, na ausência de outra explicação, poderá corresponder a uma fusão entre as palavras “anarquia” e “arquivo”. Refiro-me a uma sujeição do arquivo a um processo de entropia, uma produção consciente de um certo grau de desordem e de aleatoriedade. De facto, as obras da exposição não seguem uma linha temática ou cronológica evidente. Dispostas pelas várias salas do espaço DuplaCena 77, constituem, antes, uma constelação de memórias dispersas, que se cruzam, interpelam e sobrepõem. Nesta exposição, os filmes – que poderiam ser catalogados por tema, autor e período de tempo – são recontextualizados para que possam estabelecer relações entre si à luz da temporalidade do agora.
Ora, se arquivar é organizar o caos intrínseco à experiência humana, o remédio para uma ferida inata que é impossibilidade de conhecer, desorganizar o arquivo é evitar a estabilização dos significados e a estagnação no tempo. ANARCHIVAL FRAMES é, afinal, um exercício cartográfico, uma (re)invenção dos mapas do passado que nos conduzem, no presente do presente, para o futuro.
Com curadoria de Ana Rito e Hugo Barata, a exposição está patente até dia 25 de maio de 2024 no espaço DuplaCena 77.