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Escrever a Sua Própria História
DATA
24 Jun 2025
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AUTOR
Joerg Bader
Koyo Kouoh é um exemplo de curadoria de excelência, aprendida no trabalho. Nada a predestinou a tornar-se a ponta de lança da arte contemporânea africana.
Nota: Koyo Kouoh faleceu no dia 10 de maio de 2025, aos 57 anos, tendo este artigo sido escrito anteriormente à sua morte. A UMBIGO publica este testemunho em jeito de homenagem, ressalvando a grande decisão da Bienal de Veneza em manter o seu projeto curatorial para 2026.

É movida por um entusiasmo pelos artistas que defende - um entusiasmo que não tem limites. O mesmo se aplica à sua equipa do museu de arte contemporânea Zeitz MOCAA, na Cidade do Cabo, que dirige desde 2019. Quer se trate de Liesl Hartmann, responsável da mediação, Thato Mogotsi, curadora da atual exposição de Nolan Oswald Dennis, ou de Rory Tsapayi, encarregado de investigação em curadoria, ela leva-os a todos consigo. Ninguém fica indiferente e todos lhe querem dar de volta essa mesma energia. O seu entusiasmo é contagioso – a sua energia parece não ter limites.
Uma das palavras preferidas de Koyo Kouoh – que passou a sua juventude em Zurique e será a próxima diretora da Bienal de Veneza – é “celebração”. A exposição When We See Us foi a sua expressão clara. Apresentada primeiro no Zeitz MOCAA e depois em todo o Gegenwarts-Museum, em Basileia, no ano passado, contou com 208 pinturas de 161 artistas, mostrando exclusivamente cenas de celebração, descanso, partilha e alegria no seio das comunidades negras – fossem elas afro-americanas, caribenhas ou subsarianas. A diretora do museu adora celebrar o orgulho das culturas negras, como se pode ver na Gala Zeitz MOCAA, que atrai um público vindo dos quatro cantos do mundo, tal como aprecia as amizades em pequenos grupos.
Uma amiga presente na Gala é a artista Otobong Nkanga, vencedora do Prémio de Excelência Artística Zeitz MOCAA 2025 (o seu nono prémio em dez anos, incluindo um na Bienal de Veneza). Ela diz que tem estado ao lado de Koyo pelo menos desde 2010, começando com a exposição Make Yourself at Home no Kunsthal Charlottenborg, em Copenhaga. “Koyo é muito direta e transparente”, diz a artista. “E quando não gosta de alguma coisa, não tem medo de o dizer. Foi assim que crescemos juntas e nos tornámos amigas”. Kader Attia, que participou na mesma exposição em Copenhaga e recebeu os prémios Marcel Duchamp e Joan Miró em 2006, observou que a curadora presta muita atenção aos diálogos com os artistas. “É uma mulher excecional”, resume André Magnin, atualmente galerista em Paris. “É determinada e pensa pela sua própria cabeça. Quando fui atacado durante um colóquio na Bienal de Dakar por ser o único branco, Koyo defendeu-me”, recorda. “O seu poder de convicção é incrível”, insistiu a galerista parisiense Imane Farès num artigo do Le Monde de 30 de outubro de 2015.
Koyo Kouoh trava uma batalha contra centenas de anos de preconceitos, de subestimação, de desprezo, de submissão, de deportação de dezenas de milhões de pessoas, de exploração e até de violência que conduziu à tortura e à morte, como se verifica no seu país de adoção, a África do Sul. Consciência Negra, o Movimento das Artes Negras ou Negritude foram movimentos artísticos e intelectuais formados em oposição ao colonialismo, ao apartheid, à segregação e ao racismo. Hoje, é o Afropolitanismo que mexe com as mentes. Lançado por Taiye Selasi e defendido pelo brilhante teórico Achille Mbembe, coloca questões como: Que processos históricos moldaram o continente africano e os seus povos? Que quadros de pensamento são utilizados quando se fala de África? Para o politólogo camaronês que ensina em Joanesburgo, os habitantes do continente africano sempre misturaram elementos de diversas culturas e crenças, e ainda mais desde o comércio transatlântico de escravos. Esta nova forma de se ver e de se percecionar ressoa na Cidade do Cabo e por todo o continente, numa altura em que os países do Norte, os maiores poluidores do mundo, se recusam a compensar os países do Sul pelas consequências cada vez mais desastrosas das alterações climáticas.
Em 1989, no ano em que a Cortina de Ferro caiu na Europa e dois anos antes do fim das leis de segregação do apartheid na África do Sul, Jean-Hubert Martin, curador de uma grande exposição parisiense, apresentou pela primeira vez obras de arte de todo o mundo em Les Magiciens de la Terre, incluindo muitas de África. A contribuição veio principalmente do co-curador André Magnin, que posteriormente construiu uma das maiores coleções de arte africana contemporânea para o multimilionário Jean Pigozzi. Pouco mais de 35 anos depois, o trabalho dos artistas africanos não é mostrado apenas em Paris, Londres, Nova Iorque ou Xangai. Hoje em dia, no continente, há mais de uma dúzia de bienais ou trienais, várias feiras de arte, e os artistas africanos não param de ganhar prémios de prestígio, desde o Leão de Ouro em Veneza ao Grande Prémio Images Vevey. Sejamos claros, falar de “artistas africanos” pode parecer arrogante para alguns, mas estamos a falar de 1,5 mil milhões de habitantes! Mas isso não importa para Koyo Kouoh. Ela é ferozmente pan-africanista e anti-nacionalista: “A força de África reside na sua dimensão continental. O pequeno Senegal, a pequena Tanzânia ou o pequeno Quénia nunca terão o peso suficiente sozinhos, quando enfrentam desafios globais, e não apenas na esfera cultural.”
“A arte contemporânea africana sempre foi contextualizada através de exposições coletivas. Isto era necessário... para os próprios africanos, mas também para o resto do mundo. Havia necessidade de recuperar o atraso e eu participei nisso…”, disse Koyo Kouoh numa entrevista à Jeune Afrique a 16 de julho de 2022, concluindo: “Hoje, tenciono dar prioridade às retrospetivas sobre um artista ou um coletivo, para destacar as genealogias estéticas e as influências intergeracionais, como a retrospetiva de Tracey Rose (apresentada depois do Zeitz MOCAA no Kunstmuseum Bern, em 2024). Por enquanto, nenhuma outra instituição em África consegue fazer este trabalho. Digo isto sem pretensões. Somos o único museu do continente com tanto espaço – cerca de 6000 metros quadrados. Mais uma razão para sermos ambiciosos e generosos!”
É verdade que as novas condições que Koyo Kouoh criou na Cidade do Cabo em tempo recorde são impressionantes. Poliglota, deu ao maior museu de arte contemporânea de África um alcance internacional, reorganizou o conselho de administração, encontrou novos mecenas, ativou mais patrocinadores e, ao mesmo tempo, deu uma nova energia a uma equipa desgastada pelo anterior diretor, que teve de fazer as malas pouco depois da abertura do museu devido a questões de sexismo e racismo. Mas, acima de tudo, a laureada com o Grande Prémio Suíço de Arte / Prix Meret Oppenheim definiu a orientação do museu, cujo título When We See Us (Lorsque Nous Nous Voyons/Quando Nos Vemos) é uma diretriz. Refere-se à minissérie da Netflix When They See Us (2019), da realizadora afro-americana Ava DuVernay, inspirada numa história verídica de um erro judicial devido a preconceitos raciais. O título muda de perspetiva ao substituir Eles por Nós. A partir de agora, a arte colecionada, conservada, exposta, teorizada e mediada no Zeitz MOCAA será sobretudo arte para um público negro, explorando a condição negra, a condição das mulheres, o neocolonialismo e os géneros. É isto que significa assumir o controlo da escrita da nossa própria história.
A arte que interessa à diretora é a arte que, como um sismógrafo sensível, regista os tremores das nossas histórias, da própria história. “(…) Uma arte que, por conseguinte, ultrapassa o mero apelo estético”, declarou ao diário alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung, a 1 de abril de 2011. É o poder transformador que lhe interessa, a sua capacidade de mudar os nossos pensamentos e os nossos sentimentos, como ela diz. Quando o mesmo jornal lhe perguntou qual seria o seu museu ideal, oito anos antes da sua nomeação, afirmou:“(…) seria um museu cuja arquitetura(…) se torna quase invisível, para que a arte se possa exprimir verdadeiramente, sem ser ofuscada pelo edifício. Deveria também estar aberto à noite e ser possível ficar lá a viver temporariamente”. Noutro contexto, também ainda antes da sua mudança para a Cidade do Cabo, ela exprimiu o seguinte desejo: “(…) deveria ser também um museu que se possa deslocar(…), mudar-se constantemente(…). Para além de artistas, convidaria também amadores a expor coisas em que acreditam”. Hoje, Koyo Kouoh está radiante por ter conseguido: dirige um museu que não ofusca a arte que expõe - constituído por antigos silos de cereais no Waterfront, o porto da Cidade do Cabo - e dentro de alguns meses o museu vai viajar até bairros desfavorecidos graças ao MOCAA Mobil, um projeto desenvolvido durante a COVID-19 e apoiado por uma fundação de Lucerna; após o encerramento forçado durante a pandemia, a equipa concebeu uma exposição, Home Is Where The Art Is, que levou muitos cidadãos da Cidade do Cabo, incluindo muitos amadores de arte, a vir pendurar “obras” das suas salas de estar – um sucesso de público. E, por vezes, há pessoas que até vivem lá: após a sua chegada, a nova diretora disponibilizou 600 metros quadrados do espaço do museu para residências de artistas da Cidade do Cabo.
Aquando da nossa visita, a artista Berni Searle ocupava algumas salas espaçosas para expor uma parte do seu trabalho num ambiente de museu. A artista, que vem de uma formação em escultura, utiliza principalmente a fotografia e o vídeo, incluindo para a sua nova série que faz referência direta ao passado dos silos de cereais e à sua envolvente marítima. A artista chamou à série Sugarbaby e refere-se às mulheres que entretinham os marinheiros em terra. Até hoje, a Cidade do Cabo é um porto de escala na rota marítima vital para o comércio entre a costa leste da América Latina e o Sudeste Asiático. “Este programa de residência artística no museu é muito importante para mim”, explica a diretora. “Permite que os artistas criem peças significativas que não poderiam concretizar nos seus estúdios. Foi o caso de Igshaan Adams. Ele produziu a enorme tapeçaria que mostrou na Bienal de São Paulo de 2023 connosco.” E, com aquele sorriso maroto que lhe é característico, acrescenta: “Como consequência, ele não quis voltar para casa, de tal modo se sentia confortável aqui”.
Koyo Kouoh orgulha-se muito de ter conseguido iniciar um programa de formação dentro do próprio museu para jovens investigadores, estabelecido em parceria com a Universidade do Cabo Ocidental (UWC). Durante a nossa visita, Aindrea Emelife – a jovem curadora que chamou a atenção do mundo da arte com o pavilhão nigeriano na mais recente Bienal de Veneza, em 2024 – era a curadora de arte moderna e contemporânea do futuro Museu de Arte da África Ocidental (MOWAA), que estava a apresentar a aspirantes a curadores. Para além da sua arquitetura bioclimática muito bem conseguida, as instalações de conservação concebidas para albergar, entre outras coisas, objetos roubados por países colonizadores, como a Inglaterra, são impressionantes e envergonham todos os diretores de museus europeus que arrastam os pés no que respeita à restituição, alegando que “África nem sequer tem os meios para uma conservação adequada”!
Koyo Kouoh é um exemplo vivo de curadoria de excelência, aprendida no trabalho. Nada a predestinou a tornar-se a ponta de lança da arte contemporânea africana. Nascida em 1967 em Douala, nos Camarões, mudou-se para Zurique com a mãe aos 13 anos. Durante o seu trabalho no Credit Suisse em Zurique, envolveu-se cada vez mais no trabalho de ONGs de apoio aos migrantes e descobriu o poder da arte como forma de refletir sobre questões sociais e políticas. Vivendo entre dois mundos, quis transmitir esta riqueza ao seu filho recém-nascido, Jibril, e, em 1996, instalou-se em Dakar – “Sem dúvida, a capital cultural de África”. Doze anos mais tarde, na mesma cidade, fundou a Raw Material Company, um centro único para a arte, o conhecimento e a sociedade, que formou dezenas de mediadores e curadores. Duas vezes co-curadora da maior exposição de arte contemporânea do mundo, a Documenta, foi nomeada em dezembro de 2024 como nova diretora da Bienal de Veneza para 2026.







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