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Exercícios de Intimidade Pública: Wolfgang Tillmans no Centro Pompidou
DATA
11 Ago 2025
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AUTOR
Alexander Burenkov
O que permanece na exposição de Tillmans é uma instalação porosa e fluida que transforma o espaço expositivo num mapa corporizado da consciência contemporânea. Em vez de traçar um arco de carreira linear, a exposição assemelha-se a um arquivo amplo e subjetivo — uma espécie de Biblioteca de Babel pessoal ou uma rede neural espacializada. A astrofísica, a vida noturna, a intimidade queer, a ansiedade ecológica, os movimentos de protesto e a investigação filosófica coexistem sem hierarquia.
Na sua primeira exposição individual na capital francesa em mais de duas décadas, Wolfgang Tillmans não se limita a instalar obras; coreografa o movimento, redirecionando subtilmente os caminhos anteriormente percorridos pelo fluxo diário de quase 4500 visitantes por dia (com 2200 lugares disponíveis para consulta) da biblioteca. Com Nothing could have prepared us – Everything could have prepared us, o Centre Pompidou termina a temporada de exposições antes de encerrar completamente para cinco anos de renovações. O resultado, todavia, não é apenas a exposição do favorito de muitos, heroi da cultura juvenil de outros, mas a vivência de uma arquitetura de encontros. A estratégia espacial evoca o que a teórica cultural Giuliana Bruno descreve como intimidade pública — um modo de proximidade relacional em que o espetador experiencia a arte não através da contemplação distanciada, mas de um envolvimento tátil e superficial. Para Bruno, a intimidade não é algo oculto ou privado, mas encenado através do contacto material entre corpos, objetos e espaços. Neste sentido, Tillmans transforma a antiga biblioteca num local onde o individual e o coletivo se fundem, e onde as superfícies da vida quotidiana se carregam de ressonância estética e emocional.
Instalada nos 6000 metros quadrados da antiga Bibliothèque publique d'information (Bpi), a exposição é um projeto site-specific, desenhado por três anos de pesquisa arquitetónica e diálogo institucional. Sublinha-se que esta biblioteca foi a primeira com estantes abertas, onde todos podiam pegar no livro que quisessem, e um dos espaços culturais mais democráticos de França — aberto a todos sem necessidade de identificação ou registo. A ligação entre livros, fotografia e intimidade é evidente para Tillmans. Na sua entrevista com Renzo Piano, realizada no verão de 2024, afirma: “Para além da sua importância civilizacional, os livros são objetos sensuais, um prazer de segurar, pesar, cheirar, conviver. São um ponto de ligação, uma ponte para outros seres humanos. Da mesma forma, tenho visto a fotografia como uma forma de estabelecer uma ligação com outros seres humanos através do tempo e do espaço.
Há muito que Wolfgang Tillmans navega e transgride fronteiras — geográficas, visuais e conceptuais. Das fotografias assombrosas da fronteira entre o México e os EUA e do muro de Gaza aos estudos coreográficos de corpos em trânsito, como o ato de descalçar os sapatos na segurança aeroportuária, a sua obra paira repetidamente no limite da visibilidade e da legibilidade. A luz cintila ao longo destes limiares — literais e metafóricos — enquanto o corpo, sempre vulnerável, realiza a sua passagem. A exposição do artista em 2016 no Museu de Serralves, no Porto, com o título revelador On the Verge of Visibility, sintetizou este compromisso em testar os limites do que pode ser visto, dito e sentido. As paredes foram sempre um espaço ativo para Tillmans, que as considera como um todo único, como a tela de um artista, e que não vê sentido na simples combinação de imagens. A recusa quase total das paredes foi um verdadeiro desafio no Centro Pompidou, em Paris, onde o artista ofereceu não uma retrospetiva, mas um ambiente total.
Tillmans reanima este legado removendo metaforicamente e fisicamente todas as barreiras, divisórias e pontos de controlo. O artista constrói um vocabulário visual e espacial distinto através do seu envolvimento sensível com as tipologias de mesas, armários e mobiliário herdados da biblioteca. Variando em profundidade e forma, estes elementos tornam-se ferramentas composicionais numa cenografia que explora a tensão entre verticalidade e horizontalidade, orientação e reorientação. Ao longo da sua carreira, Tillmans redefiniu consistentemente os termos da exposição fotográfica. No Pompidou, entra num diálogo intenso com a arquitetura radical de Renzo Piano. Os seus plintos e mesas espelhados, semelhantes a piscinas, não só refletem, como expandem o volume espacial, ecoando as condutas de comunicação abertas que definem o interior do Centro. Numa intervenção subtil, revela excertos do tapete original da biblioteca, descobertos sob acrescentos posteriores e expostos como uma espécie de estrato arqueológico. As marcas fantasmagóricas das pernas das cadeiras, das estantes e do movimento humano funcionam como resíduos históricos — provas materiais de milhares de vidas e pensamentos que circularam por este espaço. A própria exposição acaba por ser uma impressão fotográfica das muitas camadas e texturas da biblioteca que em tempos ali existiu.
Tillmans imaginou originalmente suspender todas as fotografias no teto e nas vigas estruturais da infraestrutura de comunicação, permitindo que a exposição levitasse — existindo sem paredes, suportes ou divisórias. Este gesto radical evoca uma outra exposição lendária que teve lugar há exatamente quarenta anos no Centro Pompidou, em 1985: Les Immatériaux, com curadoria de Thierry Chaput e Jean-François Lyotard. Concebida como um manifesto filosófico, esta exposição serviu de interface para explorar a condição humana em transformação na era das tecnologias emergentes. Reunindo obras de arte, artefactos tecnológicos e documentos científicos, os curadores examinaram várias dimensões da experiência física e psicológica num mundo tecnologicamente mediado. A cenografia era notavelmente inovadora: concebida para induzir desorientação, estimular todos os sentidos e encorajar a interação. Os visitantes navegaram por um percurso não linear moldado por ecrãs suspensos de opacidade variável, enquanto usavam auscultadores que tocavam uma banda sonora em constante evolução, respondendo ao seu movimento pelas zonas fragmentadas da exposição.
O que permanece na exposição de Tillmans é uma instalação porosa e fluida que transforma o espaço expositivo num mapa corporizado da consciência contemporânea. Em vez de traçar um arco de carreira linear, a exposição assemelha-se a um arquivo amplo e subjetivo — uma espécie de Biblioteca de Babel pessoal ou uma rede neural espacializada. A astrofísica, a vida noturna, a intimidade queer, a ansiedade ecológica, os movimentos de protesto e a investigação filosófica coexistem sem hierarquia. Este impulso enciclopédico é ampliado pela inclusão de obras de outros artistas apoiados pela Between Bridges Foundation, a organização sem fins lucrativos que Tillmans fundou em Londres em 2006 e que está atualmente sediada em Berlim. A exposição We Don’t Know – We Know é, antes de mais, uma reflexão sobre o conhecimento, a sua organização e as suas limitações. A fidelidade de Tillmans aos traços materiais do tempo — sejam eles têxteis, pele ou infraestruturas institucionais — é acompanhada pelo seu envolvimento de longa data com a epistemologia. Desde 2005, as suas exposições incluem frequentemente as instalações do Truth Study Center: exposições sobrepostas de recortes de jornais, impressões e anotações. Concebidas em resposta à ascensão do dogma religioso e da pseudociência, bem antes de as fake news entrarem no léxico cultural, estas obras canalizam a polifonia das vozes ideológicas em densos ensaios visuais. Não questionam o que é a verdade, mas quem a pode dizer e como. Neste sentido, o Truth Study Center funciona como arquivo e espelho, refletindo as crises de interpretação que assombram o momento presente. Longe de oferecer clareza ou resolução, a exposição de Tillmans no Pompidou abraça a dissonância e a simultaneidade da vida contemporânea. É uma ecologia estética e intelectual onde todas as coisas estão interligadas — sem fronteiras, instáveis e urgentemente reais.
Wolfgang Tillmans dificilmente está sub-representado no mundo da arte global. Só em 2025, montou quatro grandes exposições — incluindo uma individual no Albertinum, em Dresden, e uma poderosa colaboração com Boris Mikhailov, em Kharkiv. Esta última, encenada na estrutura subterrânea, semelhante a um bunker, do Centro Ermilov, marcou uma estreia histórica para os dois artistas, cuja amizade se estende por três décadas, mas que nunca tinham exposto juntos. Neste contexto, a exposição tornou-se não apenas um gesto de intercâmbio artístico, mas um ato político deliberado — mais um exemplo de Tillmans a alavancar a visibilidade como forma de resistência e solidariedade. A consciência política há muito que anima a prática de Tillmans. Lançou ativamente campanhas políticas e abordou consistentemente as implicações sociais da perceção e da representação. No Centro Pompidou, esta sensibilidade traduz-se num espaço concebido não só para a visualização, mas também para a permanência, a reflexão e o envolvimento — um ambiente híbrido onde a arte assume o ethos espacial de uma biblioteca. Os visitantes são convidados a passar algum tempo, a ficar e a regressar. A exposição torna-se, assim, um organismo social vivo.
Para Tillmans, a realidade nunca é unidimensional. É visual, sim, mas também profundamente social, económica, política e corpórea. A sua lente transita fluidamente do íntimo – retratos da galáxia dos seus amantes e amigos, as texturas da pele e do tecido – para o cósmico: céus estrelados, formações planetárias e os acidentes poéticos da luz sobre papel fotográfico. A sua obra capta não só o mundo tal como é visto, mas também como é sentido e metabolizado. A fotografia pode ser a base estrutural da sua prática, mas são as suas intervenções espaciais matizadas – a sua coreografia de escala, linhas de visão e superfície – que ativam a obra a um nível existencial. Imagens, objetos e vestígios efémeros fundem-se numa vasta ecologia interligada do visível e do invisível. Uma característica distintiva da exposição Pompidou é a inauguração do arquivo completo de vídeos de Tillmans, apresentado pela primeira vez em formato interativo. Utilizando os computadores originais da biblioteca — deixados in situ nas mesas de leitura — os visitantes podem navegar por toda a base de dados da sua obra temporal. Algumas telas exibem retratos silenciosos de antigos bibliotecários, filmados por Tillmans num ato afetuoso de homenagem; outras exibem a sua obra em vídeo na íntegra, uma coleção hipnótica que resiste à narrativa em favor da atmosfera, do clima e da duração. Aqui, as fronteiras entre instalação e arquivo dissolvem-se mais uma vez. No centro da exposição, uma fileira de vitrinas de vidro — outrora utilizadas para salvaguardar os frágeis objetos efémeros da biblioteca — alberga agora uma seleção com curadoria do acervo pessoal de artefactos culturais de Tillmans. Entre eles: uma cópia de The Sluts, de Dennis Cooper; 69 Love Songs, de The Magnetic Fields; um poster de filme em poliéster (possivelmente original) de John Waters; uma edição gasta de Staaten der Sehnsucht: Reisen durch Gay America, de Edmund White; e o livro crítico Remote Control, de Barbara Kruger. A lista está longe de ser exaustiva, mas é reveladora. Estes objetos funcionam menos como um arquivo privado e mais como superfícies refletoras — espelhos de uma vida moldada por atos implacáveis de olhar, colecionar e pertencer.
Um laser verde atravessa metodicamente o espaço escuro, como um scanner gigante que digitaliza a exposição e os seus visitantes. Num ecrã de grandes dimensões, o filme de longa duração de Tillmans desenrola-se acompanhado pela sua própria música, evocando não apenas um clube noturno, mas também um ambiente especulativo: uma zona luminosa e imersiva que aponta para aquilo que José Esteban Muñoz descreveu um dia como uma “utopia de cruzeiro“. Numa instalação sonora ali localizada, I want to make a film, de 2018, Tillmans narra um potencial projeto que analisa as tecnologias digitais. Não se trata de uma reconstrução da vida noturna enquanto tal, mas de uma proposição espacial — um imaginário queer carregado de afeto, potencial erótico e promessa política. Neste reino hipnótico de luz pulsante e som ambiente, Tillmans encena um devaneio de estranheza (queerness), liberdade e intimidade infinitas, alinhando-se com o apelo de Muñoz para revigorar a imaginação política queer como um horizonte, um modo de luta e uma recusa em contentar-se com o presente.
O título da exposição reflete a preocupação constante de Tillmans com a sobreposição de sinais e traços — aquelas pistas visuais subtis que podem, em retrospetiva, ajudar-nos a dar sentido ao desenrolar da vida e preparar-nos para ela. No entanto, como reconhece, a realidade raramente se conforma às nossas expetativas e nem sempre vemos o que está para vir. Central à prática de Tillmans é a questão: Como era algo antes de eu o ter percebido? Esta indagação enganadoramente simples sustenta grande parte da sua obra, infundindo-lhe uma curiosidade silenciosa e epistemológica. A exposição torna-se, portanto, não apenas um levantamento de obras passadas, mas um gesto reflexivo: uma tentativa de olhar para trás, através de quatro décadas de produção artística, para perguntar que imagens, moldadas por uma lógica interna invisível ou poesia oculta, perduraram e quais se desvaneceram. Sob este prisma, a exposição não se cinge apenas à visibilidade, mas também à ressonância — emocional, histórica e cultural. Fala com particular intimidade com uma geração criada nas paisagens hipervisuais da internet, imersa na política da identidade e condicionada pela estética da fragmentação. E se a experiência de transitar pelo mundo espacial e fotográfico de Tillmans produz uma estranha sensação de reconhecimento, é porque ele esteve sempre em sintonia com as correntes ocultas do presente. Através dos corpos, da luz, da cultura material do anseio e da intimidade, o artista não só traça o que vemos, mas como nos sentimos — antes mesmo de nos apercebermos.
A exposição Nothing could have prepared us – Everything could have prepared us, de Wolfgang Tillmans, está patente no Centre Pompidou até dia 22 de setembro.
BIOGRAFIA
Alexander Burenkov é um curador independente, produtor cultural e escritor sediado em Paris. O seu trabalho estende-se para além das funções curatoriais tradicionais e inclui a organização de exposições em espaços não convencionais, enfatizando frequentemente a multidisciplinaridade, o interesse pelo pensamento ambiental e as sensibilidades pós-digitais, abrangendo projetos como a Yūgen App (lançada na Bienal de Design do Porto em 2021), uma exposição num ginásio ou uma exposição online sobre serviços na cloud e modos alternativos de educação, ecocrítica e estética ecofeminista especulativa. Destacam-se os seguintes projetos recentes: Don't Take It Too Seriously na Temnikova&Kasela gallery (Tallinn, 2025), Ceremony, o projeto principal da 10ª edição da feira Asia Now (juntamente com Nicolas Bourriaud, Monnaie de Paris, 2024), In the Dust of This Planet (2022) no ART4 Museum; Raw and Cooked (2021), juntamente com Pierre-Christian Brochet no Russian Ethnographic museum, São Petersburgo; Re-enchanted (2021) na Voskhod gallery, Basel, e muitos outros.
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