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Notas sobre Lúcido Devaneio - Panorama da Arte Contemporânea Portuguesa
DATA
11 Ago 2025
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AUTOR
Ayşenur Tanrıverdi
«Lucid Reverie»: havia algo no próprio nome que me atraiu imediatamente. Parecia uma forma tangível de sonho, o eco corporal da imaginação, um estado consciente por trás de um devaneio atordoado e amoroso. Um nome brilhante. O subtítulo, «Um panorama da arte contemporânea portuguesa», acrescentou ainda outra camada. A palavra «panorama» lembrou-me os momentos mais queridos desde que me mudei para Portugal: o ato de afastar o olhar, para que a imaginação também pudesse fazer parte dele.
Um dos aspetos mais gratificantes de visitar uma exposição de arte contemporânea em Portugal é compreender de que forma a arquitetura da galeria e a paisagem circundante enriquecem a experiência global.
A Galeria Municipal do Porto está localizada nos jardins do Palácio de Cristal, do século XIX, inspirado no Crystal Palace de Londres, que acolheu a Grande Exposição de 1851. Ao entrar pelo Jardim Emílio David, os visitantes são recebidos pela ornamentada fonte Venus Fountain, de J.J. Ducel, com folhas, espirais, criaturas mitológicas e vida marinha. Estas esculturas de ferro espalhadas pelos jardins refletem o espírito progressista do Porto no século XIX e a ascensão do ferro como meio arquitetónico e artístico.
Lucid Reverie, inaugurada a 12 de julho, foi comissariada por Hiuwai Chu, diretor de exposições do MACBA em Barcelona, e Raphael Fonseca, curador de arte moderna e contemporânea latino-americana do Denver Art Museum. Convidados por João Laia, diretor artístico do Departamento de Arte Contemporânea do Porto, os curadores desenvolveram uma exposição profundamente envolvida com a cena artística portuguesa. Este projeto apresenta artistas com práticas fortes e consistentes que ainda não receberam reconhecimento internacional generalizado, refletindo a identidade crescente do Porto como uma cidade vibrante de arte.
Lucid Reverie: havia algo no próprio nome que me atraiu imediatamente. Parecia uma forma tangível de sonho, o eco corporal da imaginação, um estado consciente por trás do devaneio atordoado e amoroso. Um nome brilhante. O subtítulo, Um panorama da arte contemporânea portuguesa, acrescentou outra camada. A palavra «panorama» lembrou-me os momentos mais queridos desde que me mudei para Portugal: o ato de afastar o olhar, para que a imaginação também pudesse fazer parte dele.
Dentro do espaço expositivo, um efeito de claro-escuro — a interação dramática entre luz e sombra — preenche naturalmente a sala. Isto é possível graças ao design da fachada do arquiteto José Manuel Soares, cuja utilização de painéis longos e ripados convida a luz natural a entrar na galeria de formas impressionantes e em constante mudança. Como resultado, o «campo de investigação» de cada artista parece dissolver-se, desvendando-se num terreno mais fluido e aberto. Nesta altura, o mundo económico e mecânico exterior foi deixado para trás. Em vez disso, encontramos elementos flutuantes da história, da natureza e da sexualidade.
No centro da exposição está Climacz, uma instalação de João Pedro Vale + Nuno Alexandre Ferreira, que oferece um encontro breve, mas intenso, com os nossos desejos isolados. Nenhuma luz penetra pela sua entrada ou saída, apenas a música e o ritmo permanecem, sugerindo que, por vezes, a escuridão revela mais do que a luz.
A grande obra em várias camadas de Ana Vidigal traz um navio — como um de uma tragédia grega — para um mar de desenhos infantis fantásticos incorporados na composição. O som da água na instalação de Sena Gonçalo mistura-se com o filme de Sofia Borges, The Soul of Water, onde um homem com uma bandana vermelha sorri numa cama, apesar dos pesados fardos na sua alma. As superfícies porosas na obra de Francisco Trêpa, sempre sugerindo algo selvagem e inquietante por baixo da beleza, ressoam com o prazer de estar ao mesmo tempo oculto e visível nas pinturas de João Gabriel. As obras de Mané Pacheco, marcadas pela tensão da presença corporal, parecem ecoar o espírito da fonte de Vénus no jardim exterior, onde a mitologia, o desejo e o ornamento convergem. Em contraste, as formas suaves e desgastadas pelo tempo de Tiago Mestre e o ritmo escultural tenso e quase explosivo de Sara Bichão criam um diálogo silencioso: entre tensão e libertação, colapso e contenção.
O diálogo silencioso percorre os dois andares da exposição, sentido tanto na atmosfera quanto nas próprias obras.
Esta questão interessa-me verdadeiramente e orienta a abordagem curatorial de Raphael Fonseca e Hiuwai Chu: esta exposição reúne artistas que não evitam a ideia do documento e o apelo do «real» de uma perspetiva sociológica.
Lembro-me que, num dos seus romances, o filólogo e escritor Jaume Cabré sugere que as pessoas não residem em países, mas na língua. Esta ideia implica que ficar ou sair de um lugar pode não ser o que realmente importa. Quer um artista opte por permanecer na sua terra natal como forma de resistência ou viaje milhares de quilómetros para longe dela, a única coisa da qual não poderá escapar é de si mesmo, e o lugar que ele habita, em última análise, como diz Cabré, é a língua.
Esta linguagem partilhada cresce organicamente, para além da estrutura. Lucid Reverie fala, sem dúvida, esta linguagem. O seu panorama abraça um estilo que não se coíbe do fascínio da realidade nem de questionar o passado. Como Michel Foucault nos lembrava frequentemente, devemos regressar às coisas, revisitando, reconsiderando, repensando. Numa era sobrecarregada de informação, a capacidade da arte contemporânea apresentar questões complexas a partir de ângulos inesperados, sem oferecer soluções imediatas, é inestimável. Convida os espectadores a fazer uma pausa, refletir e redescobrir.
Os artistas em Lucid Reverie fazem mais do que partilhar as suas obras ou processos; interrogam o passado e questionam os quadros morais, explorando a resistência e a recusa. Portugal é um lugar maravilhoso para testemunhar a jornada da arte contemporânea, onde a história está sempre presente e onde os gestos artísticos surgem não só da tradição, mas também da ruptura, da reinvenção e de formas silenciosas de resistência.
A exposição Lucid Reverie está aberta até 12 de outubro de 2025.
Artistas participantes: Ana Vidigal, André Sousa, Andreia Santana, Belén Uriel, Dayana Lucas, Francisco Trêpa, Gonçalo Sena, Ilídio Candja, Joana Escoval, João Gabriel, João Pedro Vale + Nuno Alexandre Ferreira, Mané Pacheco, Mariana Caló & Francisco Queimadela, Sara Bichão, Sara Chang Yan, Silvestre Pestana, Sofia Borges, Teresa Murta, Tiago Madaleno, Tiago Mestre.



BIOGRAFIA
Ayşenur Tanrıverdi é uma escritora sediada em Istambul. Vive em Lisboa desde setembro de 2022. Estudou na Universidade de Istambul e é autora de duas obras de ficção literária publicadas. Colaboradora regular do Cumhuriyet, um importante jornal turco, onde escreve sobre a cultura portuguesa. Os seus ensaios e textos críticos sobre teatro, literatura e arte contemporânea também têm sido publicados em várias revistas de arte.
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