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Finalmente Casa, Enfim Conversa | Novo Espaço Coleção Arte Contemporânea – Lisboa Cultura
DATA
21 Ago 2025
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AUTOR
Benedita Salema Roby
Escrevo-vos acerca da primeira exposição que apresenta e articula parte da coleção, composta maioritariamente por algumas das aquisições realizadas ao longo de 2024, em conjunto com algumas anteriores, atraídas por cumplicidades e parentalidades. Aquilo que se destaca, na composição desta mostra, são diálogos de “afinidades estéticas e relações espaciais”, dizem Sara Antónia Matos e Pedro Faro, responsáveis pela curadoria desta primeira exposição. Mas não só. Há discursos parentes, bem evidentes, que nos mostram que estamos, de facto, em casa.
Ao entrar num espaço que já nos é familiar, reconhecemos de imediato quem nos vem receber à porta. É Fernanda Fragateiro a cumprimentar-nos (não, não em pessoa) com o seu vocabulário tão claro e conciso, que nos desarma prontamente de qualquer cerimónia tímida – aquela que sentimos nos primeiros momentos dos convívios íntimos. Estávamos ainda a acabar de saudar Fragateiro no hall de entrada, onde se trocam dois dedos de conversa cordial, antes de nos encaminharmos à sala para cumprimentar o resto dos convidados, quando somos interpelados por Luísa Cunha. Apressada, uma vez que se rege sempre pelos seus tempos e acaba por chegar, muitas vezes, atrasada. De tal maneira que costuma ficar à porta. Pois bem, estava Fragateiro a falar-nos brevemente sobre um trabalho antigo, a par de um tema que lhe é querido, onde reivindica a demolição enquanto desconstrução, opondo-se à noção de destruição, quando ouvimos Luísa Cunha chegar. Ouço, por trás do meu ombro, uma voz atenta que pede licença para entrar, para poder ver aquilo que Fragateiro estava a dizer, como quem interrompe sem querer interromper.
Aquilo que tento transmitir é a sensação peculiar de uma hospitalidade familiar, que sentimos ao entrar num espaço que coloca todas estas vozes, nossas vizinhas, a dialogar. Mas que vozes? Que espaço? Who, Where? É a questão, título da exposição, respondida de imediato pela própria proposição curatorial da casa onde habita, agora, o acervo municipal. Evidentemente, as vozes que compõem a Coleção de Arte Contemporânea da Câmara Municipal de Lisboa, não podem estar todas representadas em uníssono, na mesma partitura, na mesma folha de sala do espaço Lisboa Cultura. O próprio espaço também não o permite, e ainda bem. Ao invés de manter uma exposição permanente, este espaço cultiva encontros e confrontos por meio de exposições temporárias – estabelecendo discursos intermitentes, que recusam a fixidez de correlações e interpretações inerentes. Uma vez que, além da pluralidade de obras, esta coleção se encontra em contínua construção. Apesar de o who ser uma variável, o where é uma constante, pelo menos por agora. Aquela que era uma das Galerias Municipais, na Avenida da Índia, é agora o Espaço Coleção Arte Contemporânea – Lisboa Cultura. Mais uma vez, insisto na narrativa de um lugar que nos era já familiar.
Escrevo-vos acerca da primeira exposição que apresenta e articula parte da coleção, composta maioritariamente por algumas das aquisições realizadas ao longo de 2024, em conjunto com algumas anteriores, atraídas por cumplicidades e parentalidades. Aquilo que se destaca, na composição desta mostra, são diálogos de “afinidades estéticas e relações espaciais”, dizem Sara Antónia Matos e Pedro Faro, responsáveis pela curadoria desta primeira exposição. Mas não só. Há discursos parentes, bem evidentes, que nos mostram que estamos, de facto, em casa. Ainda assim, espero que fique claro, que a herdade e a parentalidade que aqui declaro não está marcada pela partilha de uma nacionalidade, mas pela familiaridade daquilo que são as narrativas que caracteriz(ar)am a nossa sociedade – a portuguesa e lisboeta –: passando pelo colonialismo, com a crítica de Délio Jasse, que já tínhamos visto o ano passado no Pavilhão Branco das Galerias Municipais; pelo pós-colonialismo, com o trabalho de Ângela Ferreira, que nos tem acompanhado ao longo da última década; pela emigração de outra geração, com as fotografias e relatos de Vasco Araújo – homónimas ao título da exposição –; bem como pela curta metragem de Filipa César que nos faz pensar sobre a constituição e duração de um processo e projeto revolucionário, violento, lento e solitário, ao contrário do que conta a história e o imaginário literário. E ainda, servindo-me desta mesma analogia à casa e à familiaridade, seria impossível não referir a artista que está, de facto, envolta nessa representação intimista. Refiro-me a Patrícia Garrido, que apresenta a casa como uma extensão ou parte integrante de um corpo - o seu - através do qual ensaia a forma como a memória, a identidade, os afetos e a realidade são moldados pelos ambientes que ocupamos. Ainda assim, a instabilidade das suas esculturas, bem como a instabilidade política, dizem-nos que este é um processo em constante fluxo, negociação e transformação. Falo, aqui, do que chamamos de habitação, tanto o corpo como a casa. Enfim, espero que os autarcas tenham prestado atenção aquando da inauguração deste espaço e exposição.
Pois bem, encontramos todas estas narrativas reunidas em torno do que consideramos a memória do (nosso?) estado-nação. E é também por isso que nos sentimos em casa nesta exposição e, eventualmente, nesta coleção. Não há, aqui, a curadoria de um discurso imposto sobre o que gostaríamos que fosse o olhar sobre a nossa cidade ou nacionalidade. Há somente a realidade, contada por uma pluralidade de identidades que, evidentemente, também se servem da sua imaginação e subjetividade para pensar em torno daquilo que compõe a nossa história e sociedade. Por outras palavras, não acontece aquilo que referi, num texto anterior, acerca da Basel Art Week, onde não reconhecíamos o mundo aí representado, mas um olhar alienado.
Mas não só de lutas sociais e memórias coloniais são feitas as (nossas) narrativas nacionais. Há uma certa espectralidade distópica, uma certa ruína utópica, presente tanto nesta exposição como naquilo que consideramos o futuro desta geração. Reconhecemos outra variedade de artistas que, intencionalmente ou não, nos confirmam essa nossa perceção. Desde Igor Jesus, com a distorção de rostos ampliados e deformados pelo próprio meio pelos quais são capturados; a Jorge Queiroz e Manuel Rosa, que representam caveiras higienizadas e separadas do todo ao qual estavam associadas; a André Cepeda com o rasto da acumulação do tempo no Antropoceno, solitário e melancólico; a Paulo Nozolino com a decadência da espera e da esperança; a Isabel Cordovil com a provocação de uma decisão angustiante; a Marta Soares com a representação da degradação da urbanização; a Rui Chafes com o que se assemelha a uma armadilha de caça, em lugar do que poderia ser uma máscara; e a Ana Jotta com duas esculturas apelidadas “patas”, que lembram os corpos em Pompeia, carbonizados pela erupção do vulcão.
Depois de tudo o que escrevi, creio que os leitores compreendem o sentimento de familiaridade que evoquei regularmente ao longo deste texto. Familiaridade com os discursos críticos, lutos, nomes e espaço, mas também com uma curadoria que começa na casa e acaba no caixão. Isto é, que reconhece o dever e responsabilidade de uma museologia e de uma coleção que abre espaço para “divergências geracionais, geográficas, culturais”, impulsionando o debate público “quando o mundo global parece periclitante – ou mesmo a regredir – relativamente à liberdade, aos direitos cívicos e humanos”, rematam os curadores na folha de sala ao sublinharem que consideram fundamental a acessibilidade pública da coleção municipal.
Who? Evidentemente não foi possível referir todos os nomes presentes na primeira mostra organizada em torno desta coleção de arte – resta ao leitor cumprir a sua quota e descobrir os que ficaram de parte.
Where? Em casa. Numa casa. Finalmente. Onde as relações se aprofundam e as conversas nos transformam.

WHO WHERE / QUEM ONDE, está patente até dia 7 de setembro de 2025, no novo Espaço Coleção Arte Contemporânea – Lisboa Cultura.
BIOGRAFIA
Benedita Salema Roby (n. Lisboa) é licenciada em História da Arte (2019) e mestre em Estética e Estudos Artísticos (2022) pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa com a dissertação "Graffiti: Considerações Acerca da Estética da Transgressão no Espaço Público da Cidade". Actualmente, encontra-se a realizar o doutoramento em Estudos Artísticos — Arte e Mediações na mesma instituição, onde desenvolve, com financiamento da FCT, uma investigação centrada no potencial de libertação societal e coletiva em torno de práticas (artísticas) transgressoras, como o graffiti e a pichagem política. Sobre este tema, também participa na realização de documentários e organiza oficinas de prática e pensamento orientadas para jovens. O seu projeto de tese, intitulado "A Desconstrução da (experiência da) Cidade e a Construção da Esfera Contra-Pública: Escrita Criativa Transgressiva, Estética e Política", é orientado por Cristina Pratas Cruzeiro e Joana Cunha Leal. Para além de publicações académicas, escreve sobre artistas emergentes e exposições de artes plásticas e performativas para revistas independentes, como a Umbigo e a Sem Título.
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