interview
Entrevista a Marta Castelo, autora da Capa do Mês
DATA
20 Ago 2025
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AUTOR
Maria Inês Mendes
Doutorada em Escultura pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, onde também é professora no curso de Escultura, Marta Castelo (Lisboa, 1980) desenvolve um trabalho profundamente enraizado no barro, matéria onde encontra a possibilidade de pensar a mutabilidade e a impermanência das coisas. Nesta entrevista, falamos sobre o lugar do desenho na sua prática escultórica, sobre o potencial do barro enquanto linguagem plástica e simbólica, e sobre a forma como a artista pensa o espaço, o corpo e a construção.

Maria Inês MendesA tua formação é em escultura, mas alguns dos teus trabalhos, nomeadamente aqueles que me mostraste na Garagem Sul do MAC/CCB e a peça que foi apresentada na exposição "ENQUANTO ISSO//MEANWHILE", no MNAC, são desenvolvidos num plano bidimensional. O desenho é uma prática relativamente recente na tua prática artística. Porque sentiste necessidade de te desviar da escultura, da cerâmica, no fundo dessa tridimensionalidade? Como se posiciona o desenho na tua prática artística?

Marta CasteloDe facto, a minha prática do desenho sobre papel é relativamente recente. Fiz os primeiros desenhos sobre papel em 2019. Mas a minha vontade de trabalhar o desenho surgiu em 2015. Na verdade, numa pensei nesta incursão pelo desenho como um desvio relativamente à escultura, mas sempre como um acréscimo, como alguma coisa que lhe pudesse adicionar sentido. Na altura, em 2015, estava interessada em compreender o barro, e a forma como este é entendido na tradição escultórica. Normalmente, o barro está sempre relegado a uma fase inicial do processo, muito ligado às primeiras ideias do artista. Trata-se de um material e transição e, portanto, de um material que não é muito valorizado. Estava a ler um livro sobre os modelos da escultura quando me deparei com uma citação de Winckelmann que dizia algo como: "a modelação em argila está para o escultor como o desenho está para o pintor". Independentemente das reservas que esta frase possa suscitar, esta equiparação entre o desenho e a modelação em barro ressoou em mim de uma forma muito particular. Então, comecei a querer desenhar com o barro. Passei a modelar o barro com a técnica do rolo, típica da cerâmica, sempre em analogia com a linha do desenho. Durante este processo, surgiu uma linguagem nova, muito diferente de tudo o que tinha feito até então: muito mais gestual e também muito mais intuitiva. Em 2015, fiz muitas modelações em barro a partir do rolo do barro, que eu considero verdadeiros desenhos. Neste caso, o desenho provém de uma relação direta com a escultura, nasce a partir dela e, portanto, não se trata de um desvio. Mais tarde, em 2019, passei para o papel e comecei a desenhar com tintas de barro líquido. Houve uma espécie de transferência dessa linguagem que tinha montado tridimensionalmente para o papel. E sinto que há aqui qualquer coisa de modelação – uma pincelada marcada pelo gesto que modela a forma e que, por isso, acaba por ter um valor escultórico. No caso dos desenhos sobre papel, que mostrei recentemente no MNAC, diria que há neles uma certa centralidade. E é curioso já me terem dito, por exemplo, que estes desenhos lembram a circularidade da roda de oleiro.

MME essa componente escultórica parece passar também pela forma como pensas o espaço. Estes desenhos que vi no MAC/CCB, relacionam-se entre si e acabam por construir um objeto que ultrapassa os limites da sua bidimensionalidade.

Marta CasteloSim, claro. Estamos a falar de um conjunto de desenhos que desenvolvi no contexto de uma residência com o Coletivo Guarda Rios e que estão expostos no Centro de Arquitetura/ Garagem Sul do MAC/CCB. Aqui, o desenho foi instalado de uma forma muito mais espacial do que noutros trabalhos que desenvolvi. Mas ainda em relação à tua última questão... acho que o desenho e a escultura estão num jogo constante, influenciam-se mutuamente e são inseparáveis.

MMTrabalhas sempre com o barro e com a terra. Sentes que este interesse deriva da tua formação em escultura, que te inclina para uma dimensão mais matérica? Porquê trabalhar com o barro?

MCA escultura trabalha essencialmente com a matéria e com o espaço, que por si só também é matéria. Por isso, acredito que a minha formação em escultura terá decerto influenciado o meu interesse pela materialidade das coisas. Acho interessante que perguntes porquê o barro. Na verdade, o barro não foi uma escolha. Durante a minha formação, trabalhei com muitos materiais diferentes. Quando comecei a trabalhar com a cerâmica houve uma reação muito natural, muito imediata. Isto foi tudo uma questão circunstancial: fui de Erasmus para Berlim e todos os meus colegas estavam a trabalhar com este material. Mas sinto que tudo isto foi um processo. Na altura, trabalhava com o barro, mas cozia-o sempre e o barro cozido já é cerâmica, que é uma espécie de sobrevida ou morte do barro. O barro é uma matéria muito viva, muito transformável e impermanente. E eu sentia que a cerâmica era uma forma muito fixa e estável e isso criou em mim algumas dúvidas. Foi por isso que comecei a dar a trabalhar com lastras húmidas para criar alguma deformação, para permitir que, de alguma forma, o barro dissesse algo sobre si mesmo. Isto foi um longo processo de desformalização do objeto, uma tentativa de chegar a um entendimento do barro anterior a qualquer dimensão tecnológica. Aí, encontrei precisamente essa multiplicidade, essa impermanência, esses múltiplos estados que o barro pode conter. Interessa-me trabalhar com uma matéria que é viva e que, do ponto de vista simbólico, também é bastante rica.

MMPara além desta mutabilidade do barro, interessa-te, de alguma forma, mapear o território, trabalhando com um material que é retirado da terra?

MCApesar de utilizar barros que colho na natureza, não vejo propriamente a temática do território do meu trabalho, mas sim a temática da construção, que entendo como cultura. Não me interessa a construção associada à disciplina da arquitetura, mas ligada à transformação das coisas pelo Homem. Penso na construção não como edifício, mas como algo imaterial que constitui a cultura. Acho que é mais nesta via que posiciono o meu trabalho. E é a partir do barro que procuro compreender o Homem na sua relação com aquilo que o circunda. Não gosto de pensar num corte entre o Homem e natureza. Qualquer divisão entre natureza e cultura é impossível de sustentar, pois o homem é natureza, ainda que muita vezes se esqueça disso. Na verdade, não considero de todo saudável insistir nessa divisão entre a natureza e cultura, que reduz a natureza a uma matéria sem vida. E isto não quer dizer que não pense nestas questões ou não tenha sentido necessidade de pensar estas questões a partir do barro. Mas não vejo estas instâncias separadas e acho que a insistência nesta separação pode ser razão para muita destruição. Prefiro pensar na ligação entre as coisas, naquilo que nos liga aos outros seres. Além disso, o barro tem um papel histórico e um fundo mitológico que me faz acreditar que este é uma matéria privilegiada para pensar estas questões, não como oposição, mas precisamente para diluir barreiras. Em vários mitos da criação, o barro é o material do qual somos feitos e também o material ao qual regressamos quando morremos. Esta evidência mitológica diz-nos que somos, por natureza, férteis, plásticos e modeláveis, mas também vulneráveis. Temos de aprender a cuidar mais da nossa vulnerabilidade e da do outro. Não podemos deixar secar o barro que nos constitui; temos de manter viva essa plasticidade que nos caracteriza.

MMA instalação "Escrita da Cidade", apresentada na exposição "Mater", leva-me a pensar sobre a ideia de percurso e de fluxo, que, na verdade, me parece ser central na tua prática artística. Se nos teus últimos desenhos vemos o curso de um rio, aqui vemos o mapa de uma cidade. Qual é a tua relação com esta temática? Estamos perante o mapa de algum território específico?

MCA ideia de fluxo é notória em alguns dos meus trabalho, de uma forma bastante evidente naqueles desenhos do CCB e também nos primeiros desenhos que fiz e que permanecem praticamente inéditos. Estes trabalhos estão ligados ao fluxo dos corpos e, ao mesmo tempo, a algo em gestação, em latência. Na instalação “A Escrita da Cidade”, acho que a ideia de percurso é inerente à demarcação e à criação de espaço. E a relação com o corpo e com o desenho é também fundamental. Quando fui para o espaço expositivo, não tinha ainda definido o lugar das coisas. Foi num processo de desenho com os tijolos que encontrei o espaço da instalação e que construí o espaço de circulação das pessoas. Eu acho que é inerente à escultura criar espaço para ser ocupado, para ser vivido. E, nesse sentido, acho que a ideia de percurso e de fluxo nos remete para a própria natureza da escultura. Este não é um território específico. Foi um mapa que surgiu neste processo de desenhar com o corpo e com o espaço durante o período de montagem da exposição, que durou cerca de três semanas. Sabia apenas que queria ter algo que identificasse um curso de água, e que os tijolos fossem desmanchados pela sua passagem. E a instalação tem tudo isso.

MMA peça "Tabuinha da Escrita", também apresentada na exposição "Mater", remete-nos para um 'fazer ancestral' que referiste anteriormente e que, de certa forma, me parece resumir parte da tua prática artística. Podes desenvolver mais esta ideia?

MCNão diria que a minha prática se resume a um fazer ancestral. De facto, tecnologia da cerâmica é muito antiga e o modo como eu trabalho com o barro e a cerâmica - na sua maioria, sem recurso a vidrado, e valorizando a textura porosa da terracota - remete-nos para um tempo imemorial. Quando penso nas relações entre a natureza e a cultura é inevitável tentar encontrar no passado respostas que nos possam iluminar essas relações. E, sem pretender dar respostas, interessa-me a emergência do próprio homem, da agricultura, das cidades e da escrita. Curiosamente, a escrita também surgiu no meu trabalho quando comecei a testar a relação do desenho com o barro. Na realidade, fiz uma tabuinha sem me aperceber e só mais tarde a reconheci. E isso instaurou outros interesses, nomeadamente um interesse pela escrita, que entendo como um desenho codificado. Eu relaciono a escrita com o desenho e, portanto, a Tabuinha nasce nessa relação com o desenho, com qualquer coisa que emergiu há milhares de anos e que ainda marca a nossa existência hoje.

MMPor fim, pergunto: Que outros projetos tens mãos e se aproximam?

MCTenho essencialmente dois trabalhos em preparação. Em setembro, vou participar numa exposição coletiva a propósito dos 30 Anos do Museu Jorge Vieira organizada pela Câmara Municipal de Beja e, também no Alentejo, vou participar com uma performance no Fidanc Festival Internacional de Dança Contemporânea – FIDANC, que se realiza na cidade de Évora desde 1998 e tem curadoria de Rafael Leitão e Flávio Rodrigues. Ainda não sei exatamente quando, mas irei a S. Tomé e Príncipe fazer uma residência artística para preparar um trabalho que será apresentado na Bienal de S. Tomé e Príncipe de 2026.

BIOGRAFIA
Maria Inês Mendes frequenta o mestrado em Crítica e Curadoria de Arte na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Em 2024, concluiu a licenciatura em Ciências da Comunicação na Universidade NOVA de Lisboa. Escreve sobre cinema no CINEblog, uma página promovida pelo Instituto de Filosofia da NOVA. Realizou um estágio curricular na Umbigo Magazine e, desde então, tem vindo a publicar regularmente. Colaborou recentemente com o BEAST - Festival de Cinema da Europa do Leste.
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