Maria Inês Mendes: A tua formação é em escultura, mas alguns dos teus trabalhos, nomeadamente aqueles que me mostraste na Garagem Sul do MAC/CCB e a peça que foi apresentada na exposição "ENQUANTO ISSO//MEANWHILE", no MNAC, são desenvolvidos num plano bidimensional. O desenho é uma prática relativamente recente na tua prática artística. Porque sentiste necessidade de te desviar da escultura, da cerâmica, no fundo dessa tridimensionalidade? Como se posiciona o desenho na tua prática artística?
Marta Castelo: De facto, a minha prática do desenho sobre papel é relativamente recente. Fiz os primeiros desenhos sobre papel em 2019. Mas a minha vontade de trabalhar o desenho surgiu em 2015. Na verdade, numa pensei nesta incursão pelo desenho como um desvio relativamente à escultura, mas sempre como um acréscimo, como alguma coisa que lhe pudesse adicionar sentido. Na altura, em 2015, estava interessada em compreender o barro, e a forma como este é entendido na tradição escultórica. Normalmente, o barro está sempre relegado a uma fase inicial do processo, muito ligado às primeiras ideias do artista. Trata-se de um material e transição e, portanto, de um material que não é muito valorizado. Estava a ler um livro sobre os modelos da escultura quando me deparei com uma citação de Winckelmann que dizia algo como: "a modelação em argila está para o escultor como o desenho está para o pintor". Independentemente das reservas que esta frase possa suscitar, esta equiparação entre o desenho e a modelação em barro ressoou em mim de uma forma muito particular. Então, comecei a querer desenhar com o barro. Passei a modelar o barro com a técnica do rolo, típica da cerâmica, sempre em analogia com a linha do desenho. Durante este processo, surgiu uma linguagem nova, muito diferente de tudo o que tinha feito até então: muito mais gestual e também muito mais intuitiva. Em 2015, fiz muitas modelações em barro a partir do rolo do barro, que eu considero verdadeiros desenhos. Neste caso, o desenho provém de uma relação direta com a escultura, nasce a partir dela e, portanto, não se trata de um desvio. Mais tarde, em 2019, passei para o papel e comecei a desenhar com tintas de barro líquido. Houve uma espécie de transferência dessa linguagem que tinha montado tridimensionalmente para o papel. E sinto que há aqui qualquer coisa de modelação – uma pincelada marcada pelo gesto que modela a forma e que, por isso, acaba por ter um valor escultórico. No caso dos desenhos sobre papel, que mostrei recentemente no MNAC, diria que há neles uma certa centralidade. E é curioso já me terem dito, por exemplo, que estes desenhos lembram a circularidade da roda de oleiro.
MM: E essa componente escultórica parece passar também pela forma como pensas o espaço. Estes desenhos que vi no MAC/CCB, relacionam-se entre si e acabam por construir um objeto que ultrapassa os limites da sua bidimensionalidade.
Marta Castelo: Sim, claro. Estamos a falar de um conjunto de desenhos que desenvolvi no contexto de uma residência com o Coletivo Guarda Rios e que estão expostos no Centro de Arquitetura/ Garagem Sul do MAC/CCB. Aqui, o desenho foi instalado de uma forma muito mais espacial do que noutros trabalhos que desenvolvi. Mas ainda em relação à tua última questão... acho que o desenho e a escultura estão num jogo constante, influenciam-se mutuamente e são inseparáveis.
MM: Trabalhas sempre com o barro e com a terra. Sentes que este interesse deriva da tua formação em escultura, que te inclina para uma dimensão mais matérica? Porquê trabalhar com o barro?
MC: A escultura trabalha essencialmente com a matéria e com o espaço, que por si só também é matéria. Por isso, acredito que a minha formação em escultura terá decerto influenciado o meu interesse pela materialidade das coisas. Acho interessante que perguntes porquê o barro. Na verdade, o barro não foi uma escolha. Durante a minha formação, trabalhei com muitos materiais diferentes. Quando comecei a trabalhar com a cerâmica houve uma reação muito natural, muito imediata. Isto foi tudo uma questão circunstancial: fui de Erasmus para Berlim e todos os meus colegas estavam a trabalhar com este material. Mas sinto que tudo isto foi um processo. Na altura, trabalhava com o barro, mas cozia-o sempre e o barro cozido já é cerâmica, que é uma espécie de sobrevida ou morte do barro. O barro é uma matéria muito viva, muito transformável e impermanente. E eu sentia que a cerâmica era uma forma muito fixa e estável e isso criou em mim algumas dúvidas. Foi por isso que comecei a dar a trabalhar com lastras húmidas para criar alguma deformação, para permitir que, de alguma forma, o barro dissesse algo sobre si mesmo. Isto foi um longo processo de desformalização do objeto, uma tentativa de chegar a um entendimento do barro anterior a qualquer dimensão tecnológica. Aí, encontrei precisamente essa multiplicidade, essa impermanência, esses múltiplos estados que o barro pode conter. Interessa-me trabalhar com uma matéria que é viva e que, do ponto de vista simbólico, também é bastante rica.
MM: Para além desta mutabilidade do barro, interessa-te, de alguma forma, mapear o território, trabalhando com um material que é retirado da terra?
MC: Apesar de utilizar barros que colho na natureza, não vejo propriamente a temática do território do meu trabalho, mas sim a temática da construção, que entendo como cultura. Não me interessa a construção associada à disciplina da arquitetura, mas ligada à transformação das coisas pelo Homem. Penso na construção não como edifício, mas como algo imaterial que constitui a cultura. Acho que é mais nesta via que posiciono o meu trabalho. E é a partir do barro que procuro compreender o Homem na sua relação com aquilo que o circunda. Não gosto de pensar num corte entre o Homem e natureza. Qualquer divisão entre natureza e cultura é impossível de sustentar, pois o homem é natureza, ainda que muita vezes se esqueça disso. Na verdade, não considero de todo saudável insistir nessa divisão entre a natureza e cultura, que reduz a natureza a uma matéria sem vida. E isto não quer dizer que não pense nestas questões ou não tenha sentido necessidade de pensar estas questões a partir do barro. Mas não vejo estas instâncias separadas e acho que a insistência nesta separação pode ser razão para muita destruição. Prefiro pensar na ligação entre as coisas, naquilo que nos liga aos outros seres. Além disso, o barro tem um papel histórico e um fundo mitológico que me faz acreditar que este é uma matéria privilegiada para pensar estas questões, não como oposição, mas precisamente para diluir barreiras. Em vários mitos da criação, o barro é o material do qual somos feitos e também o material ao qual regressamos quando morremos. Esta evidência mitológica diz-nos que somos, por natureza, férteis, plásticos e modeláveis, mas também vulneráveis. Temos de aprender a cuidar mais da nossa vulnerabilidade e da do outro. Não podemos deixar secar o barro que nos constitui; temos de manter viva essa plasticidade que nos caracteriza.
MM: A instalação "Escrita da Cidade", apresentada na exposição "Mater", leva-me a pensar sobre a ideia de percurso e de fluxo, que, na verdade, me parece ser central na tua prática artística. Se nos teus últimos desenhos vemos o curso de um rio, aqui vemos o mapa de uma cidade. Qual é a tua relação com esta temática? Estamos perante o mapa de algum território específico?
MC: A ideia de fluxo é notória em alguns dos meus trabalho, de uma forma bastante evidente naqueles desenhos do CCB e também nos primeiros desenhos que fiz e que permanecem praticamente inéditos. Estes trabalhos estão ligados ao fluxo dos corpos e, ao mesmo tempo, a algo em gestação, em latência. Na instalação “A Escrita da Cidade”, acho que a ideia de percurso é inerente à demarcação e à criação de espaço. E a relação com o corpo e com o desenho é também fundamental. Quando fui para o espaço expositivo, não tinha ainda definido o lugar das coisas. Foi num processo de desenho com os tijolos que encontrei o espaço da instalação e que construí o espaço de circulação das pessoas. Eu acho que é inerente à escultura criar espaço para ser ocupado, para ser vivido. E, nesse sentido, acho que a ideia de percurso e de fluxo nos remete para a própria natureza da escultura. Este não é um território específico. Foi um mapa que surgiu neste processo de desenhar com o corpo e com o espaço durante o período de montagem da exposição, que durou cerca de três semanas. Sabia apenas que queria ter algo que identificasse um curso de água, e que os tijolos fossem desmanchados pela sua passagem. E a instalação tem tudo isso.
MM: A peça "Tabuinha da Escrita", também apresentada na exposição "Mater", remete-nos para um 'fazer ancestral' que referiste anteriormente e que, de certa forma, me parece resumir parte da tua prática artística. Podes desenvolver mais esta ideia?
MC: Não diria que a minha prática se resume a um fazer ancestral. De facto, tecnologia da cerâmica é muito antiga e o modo como eu trabalho com o barro e a cerâmica - na sua maioria, sem recurso a vidrado, e valorizando a textura porosa da terracota - remete-nos para um tempo imemorial. Quando penso nas relações entre a natureza e a cultura é inevitável tentar encontrar no passado respostas que nos possam iluminar essas relações. E, sem pretender dar respostas, interessa-me a emergência do próprio homem, da agricultura, das cidades e da escrita. Curiosamente, a escrita também surgiu no meu trabalho quando comecei a testar a relação do desenho com o barro. Na realidade, fiz uma tabuinha sem me aperceber e só mais tarde a reconheci. E isso instaurou outros interesses, nomeadamente um interesse pela escrita, que entendo como um desenho codificado. Eu relaciono a escrita com o desenho e, portanto, a Tabuinha nasce nessa relação com o desenho, com qualquer coisa que emergiu há milhares de anos e que ainda marca a nossa existência hoje.
MM: Por fim, pergunto: Que outros projetos tens mãos e se aproximam?
MC: Tenho essencialmente dois trabalhos em preparação. Em setembro, vou participar numa exposição coletiva a propósito dos 30 Anos do Museu Jorge Vieira organizada pela Câmara Municipal de Beja e, também no Alentejo, vou participar com uma performance no Fidanc Festival Internacional de Dança Contemporânea – FIDANC, que se realiza na cidade de Évora desde 1998 e tem curadoria de Rafael Leitão e Flávio Rodrigues. Ainda não sei exatamente quando, mas irei a S. Tomé e Príncipe fazer uma residência artística para preparar um trabalho que será apresentado na Bienal de S. Tomé e Príncipe de 2026.