Cães como nós
Patente no Círculo Sede do Círculo de Artes Plásticas de Coimbra até 30 de dezembro do presente ano, Looking at Animals denuncia-se aparentemente no título, porém a experiência in situ, acompanhada pelo texto da folha de sala da autoria do curador João Silvério, leva-nos a uma inversão de papéis – quem está a olhar para quem? Aliás, quem é quem? Ou melhor, quem será o quê?
Numa primeira sala, à esquerda da entrada, é-nos dada a ver uma série de vídeos: Traço, Gazzelle and dog, Escrever, Sailling dog e Candeeiros e cão criam intersecções sonoras que nos impedem de perceber a origem de cada som individualmente, ou sequer quais sãos os vídeos sonorizados e os que não têm som. As projeções tentam contar uma história – somos recebidos nesta espécie de esquizofrenia auditiva, ondas sonoras que se entrecruzam formando uma camada quase independente, amorfa, mas certamente necessária para a intenção da artista.
Há vários animais espalhados pela exposição, quer em desenhos projetado (os já referidos vídeos), quer em desenhos colocados nas paredes dos espaços expositivos, quer em pinturas a óleo sobre tela. Há inclusive uma instalação que remete para a representação minúscula de uma vaca – Sem título, 2020 – uma vaca de plástico sobre cubo de papel, amarrada à janela com corda. Nesta mesma divisão do espaço expositivo encontramos uma figura declaradamente humana: Sem título, 2019 – um desenho a esferográfica sobre papel e que evoca em mim o trabalho de Gaëtan, artista português que a partir dos anos 80 trabalhou o autorretrato de forma obsessiva, fazendo dessa mesma obsessão o seu corpo de obra. É o primeiro olhar taxativamente humano no meio de todos os outros olhares que à partida não o serão – cães, vacas, galinhas (cujas referências transportadas pelos seus títulos poderão ser descodificadas no texto de João Silvério) mas que merecem um novo olhar – figuras aparentemente animalescas que nos olham, um gesto fabular que provoca novas intersecções – quem olha para quem?
Aceitemos a multiplicidade animalesca do eu e a sua representação infinita.
Permitam-me, agora, terminar com uma entrada dos diários de Miguel Torga, datada de 6 de fevereiro de 1932, em Coimbra:
Passo por esta Universidade como cão por vinha vindimada. Nem eu reparo nela, nem ela repara em mim.