A função do objeto estético — aqui tomado como obra de arte contemporânea — reside, paradoxalmente, na sua disfuncionalidade. Deve tender para a sua indizibilidade, entregando-se ao inefável como adjetivo último. Nesse gesto, o objeto escapa ao domínio do sentido estável e remete-nos à autonomia radical da ideia. Será sempre mais sensato admitir que a apreensão total é impossível — e este reconhecimento devolve-nos, como um troco epistemológico, à origem do pensamento.
É nesse território de tensão e fuga que se inscrevem os trabalhos reunidos em Da Dobra que Chama e Traz. Em diálogo com o desenho e o papel, esta seleção, com curadoria de Catarina Mel e Ricardo Escarduça, reúne no Museu Ibérico de Arqueologia e Arte de Abrantes um conjunto de obras em papel da Coleção Figueiredo Ribeiro — objetos que nos confrontam com a urgência (ou impossibilidade) de uma linguagem própria.
A ‘Dobra’ é, assim, um conceito operativo que remete para a intersticialidade da obra de arte — o espaço entre a ausência e a presença que, não sendo a pretendida (dada a sua impossibilidade), se torna uma possibilidade em permanente transmutação. ‘Chamar’ e ‘trazer’, verbos que, antes da sua hipotética concretização, são sintomas de uma ausência, figuram no título da exposição e provocam ou exigem uma completude que parte da presença do visitante, percetiva e corporal. Falamos de obras de arte que, simultaneamente, reclamam e rejeitam o nosso olhar, numa hostilidade ora mais ora menos visível, exigindo-lhe uma atenção diferente. Não se trata propriamente da completude de uma forma, mas da sua transição.
É esse estado de impermanência — não como fragilidade, mas como método — que une os trabalhos aqui reunidos. A ‘Dobra’, conceito que a curadoria convoca, é uma operação que perturba o plano, fragmenta a linha, retira à superfície a sua passividade. Recorda-nos a eterna efemeridade contida no devir fragmentado. Pensamos em José Luis Borges: Que rio é este / Pelo qual corre o Ganges? 1
O gesto curatorial constrói, mais que um percurso, um campo no qual a própria ideia de coleção se reconfigura: não como acumulação, mas como lugar de dobra, de ligação entre tempos, artistas, gestos. A diversidade dos nomes convocados serve de expansão a isso mesmo.
É nessa tensão entre o unido e o separado que a exposição se constitui. Devemos saber ver com a imagem2. Não somos convocados a decifrar, mas a sustentar o incómodo daquilo que não se explica. O que é mostrado nunca se esgota, e o que é pensado nunca se fixa.
Da Dobra que Chama e Traz reúne obras de Alexandre Conefrey, Ana Jotta, André Cepeda, Bruno Cidra, Carlos Bunga, Cecília Costa, Dalila Gonçalves, Fernando Calhau, Francisco Tropa, Inês Teles, João Ferro Martins, João Maria Gusmão, José Loureiro, José Pedro Croft, Luís Paulo Costa, Nikias Skapinakis, Nuno Sousa Vieira, Rita Gaspar Vieira, Rui Horta Pereira e Sara Bichão. A exposição pode ser visitada até dia 16 de agosto.
1 Do poema Heráclito. Tradução livre do autor.
2 Cf. George Didi-Huberman