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O céu, sol, chuva, chuva, chuva: Luísa Correia Pereira no Panteão Nacional
DATA
23 Dez 2025
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AUTOR
Dela Christin Miessen
Não é frequente visitar o Panteão Nacional, local de descanso da poetisa Sophia de Mello e do símbolo da resistência, Humberto Delgado. Do grego pántheion - «todos os deuses» - o Panteão foi outrora a casa do divino. Em Lisboa, tornou-se um templo da memória, onde os vivos encontram os mortos. Um espaço que absorve o tempo, cujas superfícies de mármore capturam os nomes daqueles que a nação escolheu recordar para a eternidade.
Por ocasião do seu 80.º aniversário, as obras de Luísa Correia Pereira (1945-2009) estão temporariamente expostas na Casa dos Deuses, reunindo gravuras da Coleção Caixa Geral de Depósitos, uma das mais significativas coleções públicas de arte em Portugal. Conhecida pelo seu compromisso com a preservação e divulgação da arte moderna e contemporânea portuguesa, a coleção possui muitas obras que exploram a tensão entre a experimentação material e a liberdade poética. As peças em exposição, criadas entre 1971 e 1974, marcam anos de descoberta e expansão criativa.
Ao longo da sua carreira, Luísa Correia Pereira revelou uma imaginação invulgar na criação de personagens, narrativas, paisagens e outros elementos gráficos e pictóricos. Através de uma linguagem visual quase infantil, construiu um alfabeto fantástico de formas, revelando significados oníricos. A prática de Pereira, marcada pelo humor e pelo caos controlado, desafia os protocolos da memória institucional, com as suas obras a vibrarem onde a comemoração normalmente exige silêncio.
Entre 1971 e 1974, Pereira desenvolveu um conjunto de obras que revelam tanto um domínio técnico como uma abordagem sem restrições à experimentação. Trabalhando com grattage, monotipia, xilogravura, água-forte e água-tinta, a artista tratava a gravura menos como um método de reprodução e mais como um laboratório de expressão. Como observa o curador Hugo Dinis, as suas obras iniciais, como Madeira (1971) e Deus diz que dá! (1972), já sugerem uma intimidade tátil com a superfície, onde a forma emerge através do contacto e não do controlo. As monotipias Sem título (1972) e Um ser a nadar – um ente nadando (1973) exploram ainda mais essa imediatez: gestos simples, materiais modestos e a repetição do processo de impressão geram imagens de presença surpreendente.
Durante a sua bolsa de estudos no Atelier Friedlaender, centro fundamental para a gravura nas décadas do pós-guerra, financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian, Pereira trabalhou sob a supervisão de Stanley William Hayter (1901-1988), que revolucionou a gravura ao tratá-la como uma forma de arte experimental e colaborativa, incentivando a forma livre e a mistura de cores. Este período permitiu-lhe aprofundar o seu domínio da gravura em metal e expandir o seu vocabulário visual para composições mais complexas. Obras como Progressão a vermelho (1972), Céu cinzento e chuva, chuva, chuva, chuva (1973) e Stairs (1973) reúnem-se em constelações de linhas e símbolos, como se revelassem fragmentos de uma história esquecida enquanto inventam uma nova. Em 4 Bolas – 4 arcos – 1 pau (1973) e O Sol, a força, a terra e o céu (1973), os símbolos e as cores correspondem diretamente às ideias nomeadas nos títulos, transformando a abstração num diálogo visual. As últimas gravuras, Source animal et vegetal (interchangeable) e Source animal et vegetal (interchangeable) III (ambas de 1974), combinam quatro placas impressas em duas cores, dispostas lado a lado ou espelhadas. São imagens em diálogo, como se o próprio processo ainda estivesse a falar.
O facto de estas obras pertencerem à Coleção Caixa Geral de Depósitos introduz outra camada de interpretação. Como muitas coleções corporativas, esta enquadra a experimentação artística dentro de uma retórica de património nacional e investimento cultural. Neste contexto, o jogo das obras com o gesto e a intuição é reenquadrado como património, como um valor cultural estabilizado e possuído.
De igual modo, é também pertinente questionar a razão pela qual o nome de Pereira permanece praticamente ausente do cânone do modernismo português. O seu trabalho, produzido nos anos turbulentos em torno de 1974, ocupa um espaço de transição marcado pela ditadura e pela liberdade, pelo artesanato e pela intuição. No entanto, tem sido frequentemente marginalizado em narrativas dominadas por experimentalistas masculinos. Possibilidades de Expressão é, portanto, não só uma celebração, mas também uma correção, um ato tardio de visibilidade que expõe o quão frágil e marcada pelo género a memória cultural pode ser.
A exposição Possibilidades de Expressão, de Luísa Correia Pereira, pode ser visitada no Panteão Nacional até dia 28 de dezembro.

BIOGRAFIA
Dela Christin Miessen é investigadora, escritora e editora. Faz parte do Aberta Studio em Lisboa e é co-fundadora da Echoes Residency dedicada a práticas artísticas socialmente empenhadas.
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