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Terra Sol Liberdade, na Casa de Arqueologia e Artes de Beja
DATA
28 Dez 2025
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AUTOR
Carla Carbone
“Todas as vivências do artista contribuíram para o trabalho diversificado, aberto e abrangente que reuniu ao longo da vida, o que possibilitou as múltiplas interpretações realizadas pelos artistas à sua obra, na exposição Terra Sol Liberdade, 30 anos do Museu Jorge Vieira, patente na Casa de Arqueologia e Artes de Beja.”
Talvez tenha sido nos tempos do jardim-escola, em 1926, que Jorge Vieira estabeleceu o primeiro contacto com o barro. O artista descreve a sua primeira aventura com uma pequena bola de barro que enrolou com as suas mãos desajeitadas, para criar pequenos objetos1.
O texto que escreve sobre a sua própria vida, Da Escola Paraíso até ao Alentejo2, revela um conjunto de acontecimentos que desvelam um percurso em que nada parece ter passado ao lado do artista, e tudo aparenta ter sido vivido de modo intenso, pleno e merecedor de uma atenção cuidada.
O artista, mais tarde, já como aluno nas Belas Artes de Lisboa, veio a conhecer António Sena da Silva, João Abel, Nuno Sampayo, Sotriappe, Carlos Calvet, Lagoa Henriques, Lima de Freitas, Sá Nogueira, e Zé Dias Coelho. Trabalhou, depois, com Frederico George e António Rocha, e conviveu, com artes de se esquivar à censura e à Pide, no Café do Chiado, com António Garcia, Dourdil, José Júlio Andrade Santos3.
A mesma instituição recebeu, depois, Jorge Vieira como docente, tendo estabelecido laços de amizade4 e cumplicidade com os professores Jorge Pinheiro, José Fernandes Pereira e José Ramos.
Serve este esforço cronológico para melhor entender uma vida compreendida por experiências artísticas ricas, de um artista que soube valorizar a liberdade, a ironia e aliar a sua prática artística multifacetada, erotizada e socialmente consciente ao seu tempo.
Todas as vivências do artista contribuíram para o trabalho diversificado, aberto e abrangente que reuniu ao longo da vida, o que possibilitou as múltiplas interpretações realizadas pelos artistas à sua obra, na exposição Terra Sol Liberdade, 30 anos do Museu Jorge Vieira, patente na Casa de Arqueologia e Artes de Beja.
A exposição, além de conter peças do próprio artista, compreende trabalhos de um grupo de artistas que foram desenvolvidos em referência e inspirados na sua obra. Os artistas participantes, Bárbara Rodrigues, Cláudia Guerreiro, Heitor Figueiredo, Marta Castelo, Noémia Cruz, Rita Carreira, Suzana Henriqueta, Tiago Mestre e Virgínia Fróis, estabelecem, através do seu trabalho, correspondências, confrontos, interjeições e diálogos com as peças expostas de Vieira.
As obras presentes, de Jorge Vieira, referentes a momentos temporais diferentes, corresponderam a diversas rupturas. Entre elas, as observadas nos anos 50, de um progressivo afastamento ao ideal escultórico académico e oitocentista5, que se manifesta por meio do abandono das figuras de vulto, do plinto6, (que ele substituiu por três escoras, tripés) e a uma aproximação, cada vez maior aos valores da abstracção, sem que com essas incursões se tenha comprometido em demasia com os seus fundamentos7. Vieira, na prática descomprometida, mas consciente, da sua arte, desvela e serpenteia entre histórias e enredos, por vezes remotos no tempo, que se vão revisitando, e aplicando, em novos contextos e narrativas8, e que nos torna cativos, e tocados pela sua familiaridade.
A obra de Vieira compreende a intensa imagética do touro, bem representada na exposição Terra Sol Liberdade, 30 anos. Preconiza, também, as envolvências nas culturas populares9, adensadas pelo uso do barro (tão ancestral), consolidadas pelo gosto no artesanato, na arte africana, do qual foi um coleccionador fervoroso, e pelas motivações preconizadas por artistas oriundos do início do séc. XX, como Picasso10.
João Lima Pinharanda terá descrito Jorge Vieira de modo magistral: Ao fundo popular vai buscar o barro como matéria privilegiada, ou a lógica do fantástico como determinante dos temas. Mas nunca radicalizou a sua obra até ao confronto de gosto com o público culto ou a linearidade das sucessões históricas dos estilos. É moderno na medida em que é abstractizante e surrealizante (Não é, ou nunca é, propriamente abstracto ou surrealista) praticando uma escultura herdeira de Moore, Butler ou Chadwick, referenciada a Picasso (exactamente no que também nele é mediterrânico: o touro, o cavalo, o corpo erótico…) e à arte não-europeia desde o nascer do século.11
No plano mais abstractizante, observado na obra, digamos, sincrónica de Jorge Vieira, e assumindo como ponto de partida, e campo exploratório para alguns dos artistas presentes na exposição, podemos evocar o monumento ao Prisioneiro Político Desconhecido, escultura monumental em ferro que o artista apresentou, a título independente, em 1952, no concurso internacional organizado pelo Instituto de Arte Contemporânea de Londres, e a que o autor recebe uma menção honrosa. O percurso abstractizante do artista pode ser também observado, anos mais tarde, numa depuração mais geométrica, no conjunto escultórico, compreendido por elementos múltiplos e quadriformes, que vem a desenvolver, em 1970, para o projecto do Pavilhão de Portugal, desenhado por Frederico George e destinado à Feira Universal de Osaka.
É precisamente neste conjunto escultórico de Osaka, que uma das artistas participantes na exposição, Marta Castelo, se debruça, e oferece uma demorada atenção: a artista mimetiza, em Inscrições, (2025), a obra de Osaka, através de um jogo de prismas em barro, de diferentes dimensões, estes dispostos sobre o solo, em cadências, e meneios linguísticos e formais próprios da escultura monumental do artista, mas com uma linguagem acentuadamente contemporânea. Pode observar-se, contígua à instalação da artista, ainda a presença da maquete de reduzidas dimensões, alusiva ao monumento elaborado por Jorge Vieira para Osaka. Marta Castelo criou ainda, com base em alguns desenhos que escolheu de Vieira, formas escultóricas em barro.
Podemos observar, na exposição, a instalação Jardim de Pedras, 2025, e Resolução, 2025, de Tiago Mestre. Compreendida, a primeira, por um itinerário circular de peças em terracota, de formas ovaladas, fixadas sobre a parede branca, e a segunda por um alinhamento marcado antes pela sua ortogonalidade. As formas ovóides, exploradas na obra de Vieira, foram, de igual modo, reinterpretadas pela artista Cláudia Guerreiro, através de desenhos a carvão e papel, da série O gato de Schrodinger (#1 e #2), 202512.
A peça escultórica de Heitor Figueiredo, Um homem do sul, 2025, evoca a ideia de ironia, de assemblage, associação livre, e matriz surrealista, comummente associada à obra de Vieira.
Susana Henriqueta, explora, até ao supremo, a obra de Vieira nos seus contornos mais zombeteiros e irónicos, com a série em terracota, Corpo Livre I | Voz da Terra, 2025; Corpo Livre II | Voz da Terra, 2025; e Corpo Livre I | Fragmentos de um Corpo Solar, 2025.
Noémia Cruz apresenta-nos Encapsulado, de 2003. A artista, na mesma cidade onde se encontra patente a presente exposição (Beja), revela, no Largo de São João, um vigoroso conjunto escultórico abstracto, sem título.
Virgínia Fróis oferece-nos Fuso (2025) e a série Cornetas (2025), um conjunto de peças, em terracota e cal, de notável qualidade formal e conceptual, que aludem ao tema da ancestralidade e, em simultâneo, consagram, em notas subtis, a essencialidade que a une a Vieira.
Nesta exposição, podem ver-se, ainda, os trabalhos também importantes e assinaláveis das artistas Bárbara Rodrigues, este primeiro de laivos surrealistas, e Rita Silva Carreira, que enfatizou, e explorou, a figura do touro, nos seus mais diversos contornos possíveis, da ironia13 ao sagrado.
A exposição Terra Sol Liberdade, 30 anos do Museu Jorge Vieira, patente no Centro de Arqueologia e Artes de Beja, pode ser visitada até dia 31 de dezembro.
1 Vieira, J. (1998) Da Escola Paraíso até ao Alentejo. Catálogo Museu Jorge Vieira, Casa das Artes, Câmara Municipal de Beja.
2 Ibidem
3 Ibidem
4 Ibidem
5 PINHARANDA, J. L (1998) Corpos de dentro de corpos. Catálogo Museu Jorge Vieira, Casa das Artes, Câmara Municipal de Beja. Pág. 17
6 Ibidem
7 Ibidem
8 Ibidem
9 SILVA; R. H (2023) Memória e mitos. O touro na obra de Jorge Vieira. A exposição como campo alargado; 16; Midas Museus e estudos interdisciplinares. Dossier Temático “Museologia: diálogos e encontros ibéricos”. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/372758139_Memoria_e_mitos_O_touro_na_obra_d e_Jorge_Vieira_A_exposicao_como_campo_alargado
10 Ibidem
11 PINHARANDA, J. L, Corpos de dentro de Corpos, pág. 19 (fonte acima mencionada: Pinharanda, J. L (1998) Corpos de dentro de Corpos. Catálogo Museu Jorge Vieira, Casa das Artes, Câmara Municipal de Beja.)
12 A mesma artista também expõe, no mesmo espaço a obra O ladrão de artefactos, 2025. Peça em Terracota, gesso e objectos.
13 Catálogo da exposição Terra Sol Liberdade, 30 anos do Museu Jorge Vieira | Casa das Artes, Centro de Arqueologia e Artes de Beja, 13 de Setembro a 31 de Dezembro de 2025.
BIOGRAFIA
Carla Carbone nasceu em Lisboa, 1971. Estudou Desenho no Ar.co e Design de Equipamento na Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Completou o Mestrado em Ensino das Artes Visuais. Escreve sobre Design desde 1999, primeiro no Semanário O Independente, depois em edições como o Anuário de Design, revista arq.a, DIF, Parq. Algumas participações em edições como a FRAME, Diário Digital, Wrongwrong, e na coleção de designers portugueses, editada pelo jornal Público. Colaborou com ilustrações para o Fanzine Flanzine e revista Gerador.
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