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Nebulosas Coordenadas: Sara Chang Yan na Brotéria
DATA
30 Jun 2025
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AUTOR
Tomás Camillis
Em "Uma serenidade em êxtase, de Sara Chang Yan", a mecânica celeste é arrebatada pelo encanto subjetivo. Suas obras revelam um cosmos lançado à uma vertigem que advenha talvez da instabilidade de nosso íntimo — o êxtase em contemplar um universo indiferente às nossas súplicas desordena o que outrora era estrutura.
A máquina do mundo se entreabriu
Para quem de a romper já se esquivava
E só de o ter pensado se carpia.
[…]
Toda uma realidade que transcende
A própria imagem sua debuxada
No rosto do mistério, nos abismos.
Carlos Drummond de Andrade[1]

Não foi pouca a influência dos astros no temperamento artístico ocidental. Em tábuas de argila os babilónios já sistematizavam o seu encanto com a precisão cíclica das constelações, na esperança de encontrar a redenção cósmica para a nossa insuperável solidão. A geometria de tais impecáveis padrões pautou os princípios da arte clássica, que às expressões individuais do artista excêntrico prefere a compreensão intelectual das estruturas naturais, a todos disponível mediante a clareza do cogito humano. Mas talvez a nossa essência não seja as articulações lógicas de uma razão pura, mas justo a fugacidade de um indecifrável mistério. A angústia que nos lançou às estrelas não seria por sua análise sanada, pois o que ali nos interessou foi o enigma da vastidão e da distância insuperáveis, esta qualidade de tudo o que transcende o controle do intelecto para vir tocar o âmago oculto de quem somos. Talvez a consistência de nossos atos não se origine de preceitos racionais, mas na tenacidade dos desejos elusivos que nos lançam aos aléns interno e externo.
Assim somos disputados entre os temperamentos clássico e romântico. O entendimento dos fatos e a ambiguidade dos afetos medem-se numa balança jamais equilibrada que pauta o espírito de todas as épocas, artistas e obras. Para se manter no território do possível, numa enriquecida insegurança que jamais se empobrece em preferências, a arte precisa convergir estes dois estados contraditórios no que pode ser chamado de vida poética. Pois tanto os afetos quanto os fatos são sempre filtrados por um sujeito incapaz de fugir da sua própria experiência.
Em Uma serenidade em êxtase, de Sara Chang Yan, a mecânica celeste é arrebatada pelo encanto subjetivo. Suas obras revelam um cosmos lançado à uma vertigem que advenha talvez da instabilidade de nosso íntimo — o êxtase em contemplar um universo indiferente às nossas súplicas desordena o que outrora era estrutura. Em Um plano qualitativo, tanto a invencível velocidade do cosmos quanto a indecisão gestual do sujeito transformam os corpos celestes em diagonais luminosas, manchas quebradas, linhas abertas, curvas saltitantes, recortes esporádicos, resíduos lacunares, silhuetas partidas e planetas perdidos. Toda a sua suposta solidez é submetida a um esvaziado centro pictórico que resigna tudo às bordas, acentuando a angústia de uma natureza que visa apenas escapar de si.
Nas cavernas de Lascaux, Picasso veio a compreender o desenho como a economia dos gestos precisos que rápido apreendem a essência de algo. A linha do desenhista percorre um percurso espontâneo distinto da lógica da pintura, que preenche espaços para cultivar a solidez. Talvez Chang Yan empreenda tal dinamismo não para captar a trama estelar, mas justo para acentuar a elusiva natureza de um cosmos em fuga: seus desenhos são como os vestígios de uma energia que constrói e deforma um real em eterna incompletude, impossibilitando-nos de delimitar a sua natureza — por isso talvez a artista acumule camadas em suas obras, reforçando-as na transparência e curvatura dos papéis em suspenso, nos rasgos gestuais e na sobreposição de grafismos para sugerir a plasticidade de um delicado palimpsesto. Ainda assim, é difícil pontuar a intensidade exata de seus movimentos, pois, em suas obras, há também um tom de dolência e lentidão que contraria a velocidade do desenho para sugerir o desgaste natural de uma trama cósmica já exaurida. Seus suportes, que levitam por débeis fios, reafirmam a suspensão de sentido deste cosmos impreciso e sufocado em sua leveza. Também a sua curvatura os oscila nas correntes de ar da sala expositiva, numa versão atenuada dos vendavais que percorrem suas paisagens pictóricas — entre a relapsa indolência e a velocidade acachapante, situa-se a nossa elusiva leitura das coisas.
Também fluido é o oceano que inaugura a videoarte Sintonizar uma alegria serena, paisagem originária presente em inúmeras cosmogonias, dada a sua promissora indefinição. A curvatura do suporte acentua a sua mobilidade. A profundidade da peça é destacada pelos orifícios que projetam raios de luz no fundo da sala — três delicados traços que sugerem a imensidão. No primeiro plano, uma rocha move-se, reticente — seus movimentos buscam superar o exílio ao qual a sua densidade a impôs, tão distinta da vastidão líquida. Ou seria a sua solidez justo a âncora deste oceano que, pura potência, quer ser delineado mediante seus gestos? Também paradoxal é a própria imagem de uma pedra que flutua, quando carregada pelas águas esquecendo os seus atributos — tudo oscila num universo ainda indistinto, sendo a ordem é apenas imposta pelo engenho humano: os sinos dobram e a sucessão de bandeiras exibe uma lógica geométrica de claras delimitações e pureza cromática, como bandeiras que recortam a identidade de nações.
Tal dialética é também explorada em Estar sem nome, onde opera um jogo de reflexos para projetar, no centro da obra, uma forma geométrica irregular e fantasmal, sólida e silente que é, no entanto, a silhueta secundária de um bastão de ferro polido cujas qualidades são as suas opostas. E, assim, como na pedra que flutua e o vendaval que oscila, também a geometria espectral elabora um cosmos tencionado entre a construção e a destruição onde o centro nunca se sustenta — é justo a lacuna o cerne deste ansioso cosmos sempre em vias de se tornar algo e, todavia, flertando com o nada. Seu anseio de concretude não supera o encanto da apatia. Em Sintonizar uma alegria serena, é apenas quando os sinos dobram que vemos as faixas de cor perfeitamente delimitadas: a coesão inicia-se tarde demais. O começo e o fim encontram-se no mesmo instante, pois delimitar é tanto iniciar quanto encerrar, atingindo a máxima potência no momento mais precário e desafiando a nossa compreensão intelectual dos fatos.
Se o Belo é a sensação de pertencimento a um real compreendido, tais paradoxos são mais afeitos ao temperamento Sublime, que promove o desprazer do frágil humano ante um universo insondável. Mas em Chang Yan, a angústia é serena e o êxtase, relapso. O estilo inocente com o qual retrata a hostilidade cósmica tinge o costumeiro terror com uma deleitosa aceitação, uma pueril complacência que é, talvez, a mais retumbante vitória.
Uma serenidade em êxtase, de Sara Chang Yan, está patente até 9 de julho, na Brotéria. A artista recebeu uma menção honrosa na 15.ª edição do Prémio Novos Artistas Fundação EDP 2024, cujos resultados foram anunciados na semana passada.
[1] Drummond de Andrade, Carlos. (1974) A Máquina do Mundo In. Reunião, Rio de Janeiro: José Olimpo Editora, p. 197
BIOGRAFIA
Tomas Camillis é autor e pesquisador baseado em Lisboa. Escreve narrativas fictícias e ensaios no contacto entre arte, filosofia e literatura. Possui mestrado em Teoria da Arte pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Nos últimos anos participou de pesquisas, lecionou cursos em institutos culturais, auxiliou na organização de simpósios e publicou em revistas especializadas. Atualmente colabora com o Serviço Educativo do MAC/CCB e com a revista Umbigo.
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