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Os Ramos da Experiência: Vivenciar, na 3+1 Arte Contemporânea
DATA
16 Jul 2025
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AUTOR
Tomás Camillis
A mostra dá-se no diálogo entre as ilustrações de Carneiro e as obras de Charlotte Moth, artista britânica que tudo isto assimila. Promove a mitologia de Carneiro, mas mediante outros formatos, tanto permitindo ao espectador a experiência relatada nas ilustrações de Carneiro quanto reforçando, nos jogos de reflexos, este real que é o entrelaço simultâneo de todas as coisas.
Criar não é imaginação, é correr o grande risco de se ter a realidade.[1]
Clarice Lispector

Em sua obra A Deusa Branca, Robert Graves escreve que cada letra do alfabeto dos antigos celtas irlandeses corresponde a uma árvore sagrada para os druidas. “As escolas druísticas fundavam-se em bosques ou matas e uma grande parte dos seus mistérios preocupava-se com ramos de tipos distintos”[2], sobretudo em como se enredavam nas tramas florestais entre as copas das árvores. Mas o Beth-Luis-Nion (Bétula-Sorbus-Freixo para as suas três primeiras letras) representa não só uma profunda conexão com a natureza — também a sua crença na aliança entre linguagem e realidade. Para os celtas, era através do testemunho poético que o real seria revelado. Mesmo “quando exércitos lutavam, os poetas de ambos os lados recolhiam-se numa colina para judiciosamente discutir a batalha […] e os combatentes depois aceitariam a sua versão do ocorrido, se digno de comemorar num poema”.[3] Wittgenstein talvez resistisse em apoiá-los. Quando jovem, professou que a linguagem seria apenas verdadeira quando elementar: um discurso lógico para representar factos verificáveis. Depois, reconsiderou as palavras não como espelho, mas ferramentas. A linguagem seria um jogo de regras próprias que não reflete, antes formula a nossa concepção do real. Mas era justo o ténue interstício entre a evidência e a invenção que os druidas buscavam — quando poetas julgavam batalhas, cultuavam um lúcido investigar da essência que subiste por debaixo do evento, “refinando uma complexa verdade poética em atestado exato”[4].
Uma das ilustrações de Alberto Carneiro presentes na exposição Vivenciar apresenta uma curiosa representação do humano: um enorme espelho e um olho que fita, arregalado, a paisagem. Teria aqui condensada toda a sua filosofia? O artista não inventa — é quem contempla o gentil assombro da natureza e, mais tarde, o reflete. Assim compõe a realidade da experiência humana. Corpo fundamental, renuncia o supérfluo para se entregar à percepção: sentido e consciência unidos numa arte que é o atento diálogo entre sujeito e objeto. Absorvemos o mundo, nutrimos construções mentais, entrelaçamo-las de volta à natureza. Mas não para a transcender: para suscitar a sua imanência, transformando-a nela mesma — fazendo-a, enfim, encontrar-se.
Ou talvez não haja diálogo, em nós recolhido algo alienígena que resiste à natureza, nosso intelecto: uma máquina que lhe impõe as estranhas arquiteturas de sua ordem racional. Nas outras ilustrações, abundam emaranhados de sólidos geométricos. Seriam o encanto dos devaneios racionais, resultados da pura potência do humano independente? Seu entrelaço nas paisagens, no entanto, sugere justo uma interação com o mundo — chamados de Projecto para intervenção na paisagem, são mais que futuras esculturas: vejo-os como a cartografia de uma consciência que atua no mundo. Sua complexidade dificulta a clareza lógica. Também no grosso de nossa experiência não precisamos as relações exatas em causas e consequências — os três tempos, o íntimo e o externo, o intelecto, o sentimento e a sensação: tudo se entrelaça no instante atual.
Foi em seu sítio de infância que Carneiro, pioneiro da Land Art, desenvolveu uma prática que explorava o indivíduo como resultado de seu vínculo vital com o ambiente. Sua delicadeza não se sobrepõe ao real — com ele, constrói sentido. No interstício entre tudo, elucidar-se-ia talvez a complexidade de nossa existência. Estimava, portanto, o equilíbrio dos jardins, situados entre o descontrole dos bosques e a reclusão da torre, onde o humano dialoga com a natureza. Neles, buscava o equilíbrio entre sujeito e objeto, compondo obras mediante toques subtis e sistemáticos, adaptando-se aos atributos de cada coisa, ali entrevendo o ritmo geral da vida. Talvez entendesse a essência não como a substância perene ao além da experiência, mas como algo por ela formado, como quem já não nada contra a corrente de um rio pois o descobre circular, desprovido de nascente. Sua harmonia abdica do belo clássico, construção absoluta do intelecto que impõe suas preferências ao mundo. Preferia a honestidade das coisas que, polidas pelas mãos do artista, tornam-se justo o que são — o que já eram, latentes. Pois a essência talvez não seja a impecável composição, mas o pulsar comum que dá luz a distintos fenómenos: uma pedra bem vista contém todo o mundo.
A mostra dá-se no diálogo entre as ilustrações de Carneiro e as obras de Charlotte Moth, artista britânica que tudo isto assimila. Promove a mitologia de Carneiro, mas mediante outros formatos, tanto permitindo ao espectador a experiência relatada nas ilustrações de Carneiro quanto reforçando, nos jogos de reflexos, este real que é o entrelaço simultâneo de todas as coisas. Sua lúcida subtileza não exige atenção pois não inventa para impactar, operando no existente para, sem alarde, revelar os dotes. Lembrei-me dos druidas talvez ao ver as suas fotografias de ramos entrelaçados, evocando um antigo interesse temático de Carneiro e, como ele, entrevendo as ténues estruturas naturais.
E se cada coisa manifesta à sua maneira o mesmo ritmo, noutras obras sugere este latente pulsar na relação entre determinados objetos que, à primeira vista, parecem díspares: cilindros de vidro e bastões de ferro torcido, fósseis, tampas e sólidos geométricos. Nunca organizados pelas normas do belo clássico, são dispostos numa sintonia que respeita ordem mais maleável, disponível talvez não ao intelecto, mas à intuição poética. Não deveríamos desconfiar da presença de coisas artificiais: sendo o humano e o mundo filhos da mesma natureza, o fabricado pode ser irmão do natural. É também no que a mão constrói que o espírito atento revela a essência da natureza. Talvez por isso tenha optado por fotografias, espelhos e hologramas, modelos que não fogem do real pois a ele se relatam de maneira inexpressiva. Mas também o transformam — suas obras privilegiam tons escuros, afastando-nos da materialidade dos factos em prol de um contacto mais complexo com o real, pois acrescido da experiência humana por vezes distancia para aproximar. A grande diferença entre o clássico e o moderno é que para Da Vinci a estrutura do real está no mundo, e para Cézanne está na experiência. Difícil é desfiar, na percepção, o fio que a interliga à realidade, escapando da fantasia arbitrária.
Talvez por isso em algumas obras tenha trabalhado a imagem do portal e a promessa do além, nos ramos curvos que se entrelaçam em finas soleiras e na árvore da macieira, símbolo antigo do paraíso. Mas seus portais não nos levam a outro lugar: a porta é próprio destino. A glória não se reserva ao além, mas está presente agora, somos nós que não sabemos ver os fiapos de paraíso em todas as coisas. Se o estilo gótico entrelaça ramos em vértices transcendentes, Moth recurva-os abaixo para nos revelar este paraíso imanente que é o amadurecer perceptivo. Também a regra de ouro grega era o revelar da perfeição na matéria, e as conchas de Force Fields, tantas vezes o símbolo de uma escrita perfeita que pauta as formas do cosmos, a ela aludem. Mas aqui os hologramas que as encerram impedem a objetividade de uma perspectiva clara, jogando assim com os múltiplos pontos de vista que compõe a nossa subjetividade.
Supor uma aliança absoluta entre linguagem e realidade é crer não só numa existência por inteiro acessível ao humano — também em nossa capacidade de a articular. Mas a nossa experiência é mais um caleidoscópio vasto demais para ser compreendido. Há sempre algo que escapa ao enlace do discurso. Situamo-nos, ao que parece, entre linguagens imprecisas e realidades fugidias. O essencial, já dizia Wittgenstein, é inexprimível: “do que não se pode falar, melhor calar-se”.[5] O realismo não é a arrogância das certezas fáceis, mas uma lucidez perante as incertezas e incógnitas de uma vida cuja essência, se não é esclarecida, pode ser, no entanto, sugerida pela arte enquanto experiência total. É justo a tentativa de expressar o inexprimível, elucidando sem determinar — ao invés de fuga que alimenta falsos sensos de liberdade, um amadurecer que expande o real. Sob o espelho da consciência, o olho arregala sem saber se aquilo que vê é o reflexo de si.
A exposição Vivenciar está patente na 3+1 Arte Contemporânea até dia 26 de julho, com curadoria e texto de Caroline Hancock.















[1] Lispector, Clarice. (2009). A Paixão Segundo G.H.. Rio de Janeiro: Rocco, p. 19.
[2] Graves, Robert. (1997). The White Goddess. London: Faber and Faber Limited, p. 33.
[3] Graves, Robert. (1997). The White Goddess. London: Faber and Faber Limited, p. 18.
[4] Graves, Robert. (1997). The White Goddess. London: Faber and Faber Limited, p. 19.
[5] Wittgenstein, Ludwig. (1980). Tractatus Logico-Philosophicus. Madrid: Alianza Editorial, p. 203.
BIOGRAFIA
Tomas Camillis é autor e pesquisador baseado em Lisboa. Escreve narrativas fictícias e ensaios no contacto entre arte, filosofia e literatura. Possui mestrado em Teoria da Arte pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Nos últimos anos participou de pesquisas, lecionou cursos em institutos culturais, auxiliou na organização de simpósios e publicou em revistas especializadas. Atualmente colabora com o Serviço Educativo do MAC/CCB e com a revista Umbigo.
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