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MEL no espaço EARLYMADE Cedofeita
DATA
11 Out 2024
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AUTOR
Mafalda Teixeira
Foi no passado dia 21 de setembro, por ocasião das inaugurações simultâneas do Quarteirão Cultural Miguel Bombarda/Porto Art District, que se deu a conhecer o projeto MEL, uma iniciativa colaborativa entre a galeria italiana Monitor e a portuguesa Lehmann + Silva, que, ao longo de um ano, irão ocupar temporariamente os vários espaços da concept store de moda portuguesa EARLYMADE Cedofeita.

Foi no passado dia 21 de setembro, por ocasião das inaugurações simultâneas do Quarteirão Cultural Miguel Bombarda/Porto Art District, que se deu a conhecer o projeto MEL, uma iniciativa colaborativa entre a galeria italiana Monitor e a portuguesa Lehmann + Silva, que, ao longo de um ano, irão ocupar temporariamente os vários espaços da concept store de moda portuguesa EARLYMADE Cedofeita. Visando uma abordagem experimental no que respeita à produção e promoção artística e procurando desenvolver métodos inovadores de exibição e de interação com o público, o projeto MEL irá apresentar e dar a conhecer, num contexto não convencional, trabalhos ou projetos site-specific de artistas emergentes e consagrados convidados por ambas as galerias.

Numa experiência que se pretende inovadora e em constante evolução, tendo como cenário o espaço industrial de EARLYMADE Cedofeita – por oposição ao formato tradicional do white cube –, MEL, que será composta por quatro exposições, apresenta na sua mostra inaugural obras de Dalila Gonçalves (1982), Sérgio Carronha (1984), Laurent Montaron (1972) e Joana Hintze (1993) – em cujos trabalhos, processos e materiais pressentimos denominadores comuns: a presença da memória e a montagem de tempos heterogénicos. A construção da experiência do tempo e o modo como o ser humano o experimenta são-nos revelados nos trabalhos em exibição, por vezes acumulando anacronismos dentro deles, bem como na sua disposição e montagem que pretende jogar com a experiência do espectador no espaço, seja através da presença de obras que se antecipam e revelam antes de se entrar num determinado ambiente, seja através de interrupções e intermitências.

O interesse do projeto MEL por desenvolver novos métodos de perceção, de exibição e de contacto com o público é-nos revelado no primeiro momento expositivo, que acontece fora do espaço da loja, com a obra Pontear #1, 2024, de Dalila Gonçalves, e cuja presença, pela sua localização na montra, é-nos desvendada a partir do exterior, através do vidro, como que nos convidando a entrar. Mediante um processo de trabalho de dissecação, de desbravamento e de (re)descoberta de objetos e materiais, Dalila Gonçalves revela o que os torna únicos, dando-os a conhecer, ora sistematizando-os de forma poética, ora colocando-os em relação com outros objetos, criando novas narrativas como num jogo experimental. A imersão da artista nos objetos e materiais, o seu interesse pela investigação plástica dos mesmos, pelas histórias que encerram e pelas suas funções primordiais, refletem a importância que atribui ao papel da memória e à ideia de tempo – e da sua passagem – enquanto meio e metáfora. Em Pontear #1, somos confrontados com o diálogo entre objetos que remetem para diferentes contextos, como uma assemblage, e que se revela num processo de instalação cujas ligações precisas e improváveis atribuem um novo sentido e identidade ao conjunto que se expõe ao espectador. Suspensa a partir do teto, uma corda cinzenta une diferentes elementos que se estendem até ao chão: bobinas de madeira de antigos teares do Vale do Ave e uma garra de metal – usada na base das pernas de bancos antigos de pianistas – a agarrar uma bola de cristal, que pende sobre um prato de cobre com água. À heterogeneidade de cada elemento que compõe a instalação acrescem-se – como restos de memórias – as marcas inscritas nas diversas matérias e que, resultantes do uso, do manuseio e da ação do tempo, imprimem qualidades estéticas, poéticas e afetivas à obra. De destacar em Pontear #1, para além da alusão à tradição têxtil, em diálogo com o espaço onde a obra se expõe, e à evocação da ação manual e gestual dos elementos que a compõem, a ênfase da ideia de som que percorre toda a instalação, de uma promessa e memória sonora que se pressente e cujos diversos objetos nos relembram – o tear, o piano, a água –, sem que seja necessário ouvi-lo.

A atividade recoletora, mediante um processo de desbravamento e de descoberta das matérias, perpassa de igual modo a prática artística de Sérgio Carronha, cujas criações, em exibição no logradouro da concept store e em diálogo com o jardim, assentam na memória, no decorrer do tempo e na atenção aos ciclos da Natureza. Numa experiência sensorial que nos é oferecida pelo artista, caminhamos por entre objetos escultóricos inusitados e misteriosos que habitam a área do jardim: formas sulcadas no mármore que, como achados arqueológicos, evocam e resgatam saberes ancestrais. Quais artefactos neolíticos, observamos as pequenas esculturas em mármore, numa evidente valorização da matéria-prima pelo artista que a reutiliza e transforma gravando e desenhando padrões, abrindo pequenos círculos[1], revelando-nos formas e signos que respondem a uma procura e conhecimento espiritual. A este primeiro conjunto escultórico segue-se um outro – integrado na e com a terra – de peças planas que, como num jogo, descobrimos entre plantações de tomate e manjericão. Tratam-se de peças de formas arquetípicas cujos símbolos, motivos e padrões refletem a experiência e reencontro de Carronha com a terra, resultante de um projeto de mapeamento paisagístico que tem vindo a desenvolver em Montemor-o-Novo e onde a posição destas esculturas no terreno serve como marca de orientação para solstícios, equinócios e fontes de água. Ao transportá-las e apresentá-las neste novo ambiente, o artista oferece-nos a possibilidade de uma interação íntima com a natureza, com os seus ciclos e ritmos, recuperando e evocando – em associação com o conjunto anterior – um modo de habitar ancestral e espiritual.

No piso inferior da concept store, num espaço sem janelas ou quaisquer elementos que nos dêem referências espaciais e/ou temporais, mergulhamos na escuridão que nos acolhe e conduz por uma experiência corpórea, sensorial e visual. Qual revelação, vemos surgir na área do black box, obras fotográficas e em vídeo de Joana Hintze e Laurent Montaron nas quais se exploram questões ligadas à memória. Estrategicamente colocadas ao longo das paredes, as fotografias digitais e a cores de Joana Hintze possuem um cariz autobiográfico, ao revelarem “o interior ruidoso do sótão da sua casa de infância, onde encontra esculturas, camadas de pó e memória”. Realizadas durante o período de confinamento, as imagens de formatos retangulares diferentes, tratam-se de fragmentos da realidade quotidiana captados pela lente da artista num espaço íntimo e privado, onde objetos e situações banais foram registados de modo intuitivo através do seu olhar: móveis, espelhos, malas, gaiolas e utensílios. Jogos de luz e texturas percorrem o conjunto atemporal, num equilíbrio perfeito entre as fotografias de maior dimensão que exploram o potencial escultórico dos objetos quotidianos, e as de menor dimensão que revelam uma visão pormenorizada e detalhada dos mesmos.

Em diálogo com as imagens de Joana Hintze, visionamos os três filmes de Laurent Montaron que se projetam nas paredes do espaço: Philosopher’s Stone (2017), Memory (2016) e Lick (2018). O vocabulário experimental e envolvente nos atrai. Aludindo à substância alquímica mítica capaz de transformar qualquer metal em ouro, a obra videográfica Philosopher’s Stone transporta-nos para uma memória histórica: a da criação, em França e após a I Guerra Mundial, de cópias falsificadas com ouro verdadeiro de moedas Gold Napoleon, a moeda que vemos continuamente a ser derretida e fundida no filme em exibição. Apresentando uma composição percussiva e jazzística, numa sequência ritmada e justaposta de imagens, Memory tem como personagem central uma máquina de escrever IBM Memory que, esquecida e abandonada num sótão – à semelhança das fotografias de Joana Hintze –, ganha vida, numa referência irónica e humorada do artista à evolução da passagem do tempo com recurso à história da tecnologia. A cena onírica e sensual de Lick revela o toque e interação entre dois sentidos – visão e tato – ao mesmo tempo, transportando-nos para um momento de suspensão que encerra a mostra coletiva.

A exposição está patente até 9 de novembro.

 

[1] Signo associado à eternidade, ao divino e ao tempo, que, evocando simbolicamente a perfeição e pureza das formas, alude a um universo entre a cosmologia e cosmogonia, remetendo-nos para o ciclo interminável de criação.

BIOGRAFIA
Mafalda Teixeira mestre em História de Arte, Património e Cultura Visual pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, estagiou e trabalhou no departamento de Exposições Temporárias do Museu d'Art Contemporani de Barcelona. Durante o mestrado realiza um estágio curricular na área de produção da Galeria Municipal do Porto. Atualmente dedica-se à investigação no âmbito da História da Arte Moderna e Contemporânea, e à publicação de artigos científicos.
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