Ópio! Terrível agente de inimagináveis delícias e penas!
Thomas De Quincey
Tudo vem à vida numa simples linha. Ela volteia nas revoluções do fuso cósmico de Platão,[1] feito de adamante, ou é gerada na bile da aranha solar do Brahma Upanishad, sua teia contendo todas as coisas. Esta linha inicial é tanto o princípio quanto o fim da costura, pois é ela que Penélope, com seu ponteiro de prata, puxa à noite para desatar o tecido que coseu ao longo do dia, desafiando os pretendentes que aguardam o fim do tear para descobrir quem a desposará. Assim retém a viuvez na esperança do marido Odisseu, vítima de mil contratempos, regressar à casa.
Seria possível entender o enredo deste poema não como a história do herói que salva a passiva esposa, mas como o agir divino da tecelã que cria, nos laços de seu infindo tear, a aventura vivida pelo marido? Também na Ilíada Homero aplica similar tropo ao escrever que Helena, do marmóreo frescor de seu aposento, cose as cenas da batalha que desponta na planície de Tróia.
Incontáveis culturas entendem a tecelagem como ofício de sagrada criação. Costuma-se chamar as traves superior e inferior do tear de barras do céu e da terra — entre ambas, em fibras de plantas e de bichos, a tecelã entrelaça a existência. Seus gestos contínuos e o lento acúmulo de nós induz-lhe um ânimo divino, pois seguro e sereno. Depois contempla a invejável harmonia de sua criação, onde todos os pontos amarram-se numa estrutura. É típico da tapeçaria oriental o apreço por uma matemática mística que ordena tudo o que há — no século VI o monarca Cosroes I encomendou o cultuado tapete de Baharestan, que eterniza um jardim de perfeita primavera com pedras preciosas e fios de ouro e prata. O impecável fulgor de seus padrões é como o próprio paraíso estendido aos pés do devoto, um efémero templo do eterno que salva-nos do acaso e entropia mundanos. Esta plenitude interdita à matéria é como uma janela divina ao mundo, onde a deusa abre a sua esquadria perolada para permitir-nos contemplar a lógica construtiva do além.
Os tapetes de Carlos Noronha Feio ensaiam imagens de outro tipo de paraíso, um cujo portal é guardado pela planta da papoila: sua seiva analgésica é a base do ópio, droga que outorga a conflituosa transição entre os pólos metafísicos. O seu celestial êxtase contém “as chaves do paraíso”, escreve o notório opiómano Thomas De Quincey, extraindo “da fantástica matéria cerebral cidades e templos que ultrapassam as artes dos Fídias e dos Praxíteles”[2].
Embora seus tapetes sejam de Arraiolos e portanto utilizem técnicas de influência islâmica, sua aptidão pictórica é sobretudo ocidental. Seus elementos possuem uma solidez naturalista típica do realismo europeu — seu sombreado volume pretere a típica planura da arte muçulmana e, ao invés de adequarem-se à geometria geral, são antes os agentes que articulam o espaço da obra. Também abdicam das revolutas vitais presentes nos tapetes insulares e escandinavos originadas nas joias dos povos nómades advindos da Ásia, menos geométricas que as islâmicas mas em sua maneira sensíveis à essência da tecelagem, cujo entrelaço parece solicitar este tipo de filosofia do vínculo. Mais próximo das tapeçarias europeias que impuseram a lógica da pintura ao tapete, Noronha Feio adota portanto outra perspectiva metafísica: não o vislumbre superior do deus que nos permite contemplar os sagrados arquétipos do universo, mas a observação inferior do mortal que, enraizado à carne do mundo, examina a auspiciosa anatomia deste sublime vegetal – cujo efeito, não à toa, é mais um despertar racional que afetado torpor. Ao invés de embriagar, De Quincey escreve que o ópio introduz nas faculdades mentais “a ordem, a lei e a harmonia no mais alto grau”[3], mas não uma harmonia transcendente imposta pelo compasso sagrado e sim sentida pelo indivíduo no perfeito equilíbrio de suas faculdades mentais — um paraíso todo ele imanente sensação.
Tais tensões entre o ocidente e o oriente são típicas, inclusive, da atual geopolítica do ópio. De fato uma grande influência de Noronha Feio é os recentes tapetes de guerra afegãos que, desde a ocupação soviética, incorporaram imagens de tanques, rifles, helicópteros — e a papoila, flor cuja seiva narcótica financia o talibã. Como pode a droga da razão, a flor da beleza, prometer o paraíso mas promover embates bélicos? Este teor crítico perpassa toda a obra de Noronha Feio. Imagens paradisíacas como as gotas leitosas de ópio e o êxtase ocre do sol contrastam com explosões nucleares e texturas militares, numa trágica ironia entre o anseio utópico e a realidade atómica. Se o Éden foi outrora um pomar, aqui os padrões verde-musgo adotam as camuflagens das forças armadas. Entre o espiritual e o político, desperdiçamos as delicadas oportunidades que nos são dadas. Na Ilíada é justo Helena, o auge do Belo, quem tece a selvageria bélica que arrasa os campos. Talvez por isso o sábio artesão islâmico, ao refletir como a transcendência sempre escapa-nos o alcance, tenha desde sempre tecido um mínimo erro em sua impecável composição.
Tal fragilidade, creio, é trabalhada na mostra mediante o elemento da linha solta. De independência realçada pela cor, seria ela o elemento alienígena que escapa à trama, o imponderável porvir? Ou talvez justo a nossa liberdade ante um futuro ainda informe e portanto aberto a novas costuras? Nestas obras, sempre digerido pelas figuras humanas, este elemento é como a nossa ingestão do fio cru do real – que, em nosso íntimo, é costurado em nova interpretação, dando sentido final à matéria prima do mundo num processo similar à qualidade demiúrgica da tecelagem.
Traumática é a mudança de paradigma. Aquele que ingere o ópio sente o deleitoso desastre de uma fragmentação mental que flexibiliza os padrões da mente viciada em suas falsas harmonias. Na obra A twin, born first: A droplet of milk, oh so sweet so sweet (weaver), a seiva do ópio pode ser tanto a gota do leite divino quanto um pálido meteoro cuja queda diagonal divide o tapete entre os picos de uma árida montanha e os raios de divina energia a emanar da cabeça humana recém iluminada. Também a escultura Raw Bloom aborda um desabrochar mental, segmentando o florescer da papoila. O volume esférico de seu botão quase lembra uma cabeça, podendo-se interpretá-la como a lenta abertura psíquica que recebe (expande?) feixes radiais de potência cósmica. Esta obra contrasta com Wild Bloom, de mesmo motivo mas outra matéria. Ossificadas, suas brancas esculturas contrastam com o loop infinito dos gifs de plantas cujos frutos são explosões nucleares, lembrando assim não o crescimento orgânico, mas a inação da morte — ou a palidez cadavérica dos corais destruídos pelo Antropoceno.
Já num viçoso desabrochar encontra-se a papoila de A restless beauty – Opium poppy of Adraga (fertility), cujo realismo pictórico retrata-a inclinada a um imponente sol. Há, aqui, assim como em grande parte da mostra, um discreto pendor neoplatónico: a riqueza da planta, em contraste com a simplicidade radiante do astro, é quase um comentário monista sobre a multiplicidade do físico que anseia ascender à unidade do absoluto, manancial cósmico de todo o ser. A obra poppy – flower: milk and honey (Eye: ward off the evil eye) apresenta-nos outro símbolo elevatório — um discreto zigurate sobe azul no céu como escada platónica ao além. Em the milk of nature; a bond of peoples from many lands (weavers), é a linha solta que permite a comunhão dos distantes, enlaçando duas figuras humanas tipicamente orientais, pois utilizadas pelos tecelões para nos inserir na trama perfeita de seus tapetes. Nas obras de Noronha Feio, adquirem maior robustez sem abdicar da simplicidade tradicional, acionando tanto a mentalidade oriental do indivíduo que transcende ao sublimar-se à harmonia total quanto o ímpeto ocidental de nutrir a singularidade do indivíduo. Assim, quase lembram a estética do grafite — o indivíduo marginalizado que impõe a sua voz sobre a indiferença da pólis.
Já a obra milk dew of haze, sustaining life liquid of Other worldliness (weaver; running water; star) apropria-se de toda esta herança mediante a permissiva repetição das gotas de seiva caindo dos cortes no botão da papoila. Embora realista, a vertiginosa proximidade da cena torna-a quase abstrata a olhos desatentos. O espírito da tapeçaria é nela também realçado num curioso detalhe: o rompido desenrolar do mais simples meandro grego, padrão empregado na antiguidade para representar o fluxo contínuo da harmónica vida. Sua moção assemelha-se ao mover da agulha que costura o tecido antes esgarçado, integrando os díspares — ou quem sabe o perpétuo entrelaço da energia cósmica também presente nos sinuosos motivos das tapeçarias escandinávia e insular, cujo lento contemplar proporciona um calmo torpor que abre as portas da metamorfose. Pois atentar-se à passagem do tempo é também transformá-lo. A tecelã dedicada às minúsculas revolutas do tear habita todos os instantes com a mesma calma divina. A agulha perfura o seu próprio vazio criado pela curva da linha e a repetição deste mergulho inaugura outro mundo, como o místico que ingere o ópio para adentrar-se num renovado irradiar que talvez não respeite padrões esperados.
Milk and Honey, de Carlos Noronha Feio, está patente na 3+1 Arte Contemporânea até o dia 10 de novembro, com texto de Corina L. Apostol.
[1] Platão. (2003). A República, Livro X. Cambridge: Cambridge University Press.
[2] Thomas De Quincey. (2011). Confissões de um Opiómano Inglês. Lisboa: Alfabeto, p. 111.
[3] Id., ibid., p. 92.