Natureza, identidade, corpo, reflexo, rio, ilha. Mónica de Miranda apresenta nas Galerias Municipais – Galeria Avenida da Índia Mirages and Deep Time, uma exposição multimédia que contempla a ecologia e a comunhão com a natureza, ao mesmo tempo que representa a história e identidade negras no contexto da história colonial portuguesa, debruçando-se em particular sobre a comunidade negra que habitou as margens do rio Tejo e Sado.
Entrar na Galeria Avenida da Índia é refrescante. O verde da natureza inunda os nossos sentidos e uns segundos depois, somos apresentados às duas primeiras personagens que habitam as histórias contadas por Mónica de Miranda, e que vão se desvendando no desenrolar do percurso expositivo. Duas jovens raparigas apresentam-se lado a lado, paralelas ao nosso corpo e olhando diretamente nos nossos olhos. As vestes que trazem no corpo lembram-nos de uma farda militar, serão elas guerrilheiras? Ao lado desta imagem fotográfica vemos Mirages (2022), um micro ecossistema composto por uma árvore e vegetação natural, inseridas num paralelepípedo feito de madeira e rede mosquiteira. Este cenário natural é iluminado com uma luz branca artificial, e numa das faces interiores desta estrutura está um espelho, que reflete o interior deste ecossistema e o nosso corpo. Caminhando até a outro ponto da exposição notamos a melodia espacial que se encontra no espaço expositivo, pontualmente sobreposta por outros ruídos e vozes. “Os nossos corpos são mais antigos que as imagens ou as palavras”, ouvimos.
Continuamos e a natureza alastra-se para uma fotografia de grande formato que ocupa toda uma parede. Deep Green (2022) mostra uma das guerrilheiras imersa numa paisagem de alta densidade. O vermelho da sua boina ganha destaque sobre o verde natural. Nesta mesma parede, sobreposta, vemos uma outra imagem: as jovens guerrilheiras novamente juntas, sentadas num tronco de uma árvore caída sobre um rio, com as pernas mergulhadas na água. Depois, Play in (2022) uma instalação complexa que tem como base uma estrutura de madeira composta por vários elementos: um espelho, uma cortina vermelha e uma espécie de canteiro que abriga um conjunto de plantas naturais. A maioria das instalações têm na sua base rodas, são objetos com mobilidade, como se tivessem sido feitos para estarem em movimento. Play in é fantástica, dramática e teatral. Em Salt Island (2022) vemos uma longa fotografia que capta as margens de um rio e a enorme vegetação envolvente. É uma paisagem horizontal a preto e branco que tem a peculiaridade de ter sido bordada. Com linhas finas e diferentes tipos de verde, Mónica de Miranda bordou as diferentes espécies de árvores e arbustos, os fios caem para fora dos limites da imagem como se a paisagem ganhasse vida e tridimensionalidade.
Fluindo entre duas margens, os rios do mundo foram fulcrais para as comunidades que se foram instalando nas suas margens. Oferecem água, biodiversidade, solo fértil, e uma estrada fluída até outros lugares. Por outro lado, é um lugar espiritual, que lava e purifica, que promete renascimento e batiza. As imagens que Mónica de Miranda mostra nesta exposição, foram capturadas nas margens do rio Tejo e recuperam a memória das pessoas negras escravizadas no cultivo de arroz nos rios Tejo e Sado entre os séculos XV e XVIII, uma história pouco desenvolvida pela historiografia portuguesa, como exposto num artigo publicado no n. 44 da revista científica Diacronie. Studi di Storia Contemporanea:
“Os/as negros/as do Tejo e do Sado permanecem reduzidos/as a um funcionalismo orgânico, como se o silêncio historiográfico legitimasse a sua ausência na história destes rios. (…) A história que procuramos poderá ter ficado apenas registada nos socioambientes, transitórios e marginais, dos pauis e sapais. Para prosseguir estes esforços, e com base noutros estudos sobre o cultivo de arroz em contextos transatlânticos, defendemos que pesquisas arqueológicas (sistemas hidráulicos, ferramentas agrícolas, etc.), arqueobotânicas (sementes de arroz, substratos ancestrais, etc.), ou geofísicas (padrões de paisagem à superfície ou no subsolo) poderão colocar uma nova luz sobre o cultivo de arroz durante os séculos XV-XVIII e ajudar a formular novas questões sobre documentação inexplorada.”[1]
Através da arte, Mónica de Miranda revisita estes lugares esquecidos e por estudar. Em Tide (2022), uma prateleira na parede expõe quatro fotografias de objetos com cicatrizes do tempo. Parecem artefactos e lembram-nos da importância de explorar arqueologicamente as margens do Tejo e Sado. Mais ao fundo da galeria o destaque vai para The Bath (2022), um díptico que mostra duas mulheres sentadas na vegetação das margens do rio. Parecem o reflexo uma da outra, olham a paisagem e estão em comunhão com ela. O título da obra sugere um momento íntimo de harmonia com as águas do rio, um banho fresco e puro em memória da sua ancestralidade. Mais adiante, Lost and found (2022), uma instalação com cinco colunas de som encaixadas em caixas de madeira de diferentes alturas. Ouvimos vozes, melodias e sons de rádio. As palavras alertam para a nossa relação com o solo, a terra e o clima. The Lunch on the Beach [after Manet] (2022), uma fotografia de grande formato dividida em seis partes, mostra um almoço à beira-rio entre uma mulher e um homem; sentados frente a frente numa mesa, a imagem contém pequenas naturezas-mortas (um rádio, flores e um cesto com uvas). As guerrilheiras aparecem uma de cada lado nas margens da fotografia, distantes das personagens centrais, mas integradas e presentes na paisagem, como se protegessem o encontro que está a acontecer à beira-rio. É uma imagem fantástica e íntima, parece retirada de um conto, onde se vê a extraordinária dimensão da paisagem natural em relação aos humanos. Por outro lado, a fotografia reclama o olhar feminino sobre a arte, dando uma nova interpretação à famosa pintura Luncheon on the Grass (1863) de Manet.
A exposição culmina no filme A Ilha (2022), onde vemos em movimento todas as imagens que tivemos acesso durante a exposição. As personagens ganham voz, partilham pensamentos e dúvidas, interrogam o seu lugar no mundo, no passado, presente e futuro. O que dizem é de ordem poética, reflexiva e existencial. É nítida a ligação à terra e ao solo, tanto física como espiritual. Vagueiam pela ilha, mapeando com o corpo, explorando a água, a vegetação, o solo e o subsolo. No filme vemos mesmo um arqueólogo, remetendo para a obra Tide (2022) que já aqui tínhamos contemplado. Situado entre a ficção e a realidade, o lugar que vemos alude à aldeia portuguesa São Romão do Sádão (Sado) que foi pejorativamente chamada de “a Ilha dos Pretos” entre o século XVII e XVIII (termo descrito por José Leite de Vasconcelos na obra Etnografia Portuguesa). Já um mapa agrícola dos finais do século XIX realça a continuidade de pessoas negras junto às margens do estuário do Sado, onde certas zonas foram denominadas como “Vila do Negro”, “Sesmaria dos Pretos”, “Fonte dos Negros” ou “Bairro do Cativo”[2]. “Espólios de um passado. Serei livre porque luto. Luto, de luto na luta. Os nossos corpos são mais antigos que as imagens e as palavras.”, ouvimos.
Mirages and Deep Time, mostra o trabalho interdisciplinar de Mónica de Miranda, artista portuguesa de origem angolana, numa exposição que discursa em torno da descolonização e da ecologia. Entre o reflexo e a miragem, o espelho aqui aparece como elemento essencial, é impossível ver a exposição sem sermos confrontados com a nossa imagem. A artista trata os aspetos espirituais e metafísicos entre os humanos, o solo, o território, a natureza e os recursos que ela oferece, recuperando simultaneamente a memória das comunidades negras que habitaram o Tejo e o Sado.
A exposição está patente nas Galerias Municipais – Galeria Avenida da Índia até ao dia 25 de setembro de 2022.
[1] Carmo, Miguel; Sousa, Joana; Varela, Pedro; Ventura, Ricardo; Bivar, Manuel. “Transferência de conhecimento tecnológico africano em Portugal durante a Modernidade: pessoas escravizadas e cultivo de arroz nos rios Tejo e Sado” (2020) Disponível em: https://www.buala.org/pt/a-ler/transferencia-de-conhecimento-tecnologico-africano-em-portugal-durante-a-modernidade-pessoas-e
[2] Ibidem.