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Family Portrait, de Dave and Tony
DATA
28 Jul 2025
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AUTOR
Laurinda Branquinho
O retrato de família carrega uma promessa. Apresenta uma unidade, define e eterniza papéis. Mas quando é desenhado a partir da memória individual, torna-se um espelho de laços, ausências, hierarquias e silêncios. Nele revela-se quem se destaca, quem desaparece, quem protege, quem ameaça. A exposição "Family Portrait", de Dave and Tony, parte dessa fratura, não para reconstruir a imagem da família, mas para a reimaginar e expor o que encobre.

Scared animals return home, regardless of whether home is safe or frightening 1.
A exposição é uma mise-em-scène brutal daquilo que muitas vezes se evita nomear — a violência que estrutura as relações familiares, a internalização precoce da culpa, da vergonha e do medo. É também um autorretrato coletivo que propõe um modelo de família escolhido, que resiste à lógica tradicional e heteronormativa. A prática conjunta dos dois artistas assume a identidade como um território político, onde as marcas da infância e os desejos do presente se entrelaçam para produzir um retrato de família alternativo.
Os desenhos sobre lonas — BRAINMESS (PEE FACTORY) e BRAINMESS (PEA FACTORY) — funcionam como cápsulas do tempo que nos transportam para as experiências dos artistas. Um emprego numa fábrica de ervilhas que pagou o curso de arte, um acidente humilhante na infância, um desastre de carro que transformou para sempre a estrutura familiar, e o humor e sarcasmo em que embrulham todas estas experiências.
Essa lógica repete-se em Rat Rug, onde um grande rato esfolado semelhante a um cartoon substitui o tradicional tapete-troféu animal, invertendo a lógica da domesticação e da conquista. Ao invés de celebrar a vitória sobre um animal selvagem, a peça inscreve no espaço doméstico uma figura normalmente associada ao lixo, à infestação e ao repúdio. O rato, símbolo do indesejável, assume uma posição central no espaço expositivo, celebrando a marginalidade dentro do doméstico.
Também nos retratos distribuídos pelas paredes da galeria, a estética do familiar é subvertida. Estas figuras remetem para a composição do retrato familiar, mas desconfiguram-na: os rostos são visivelmente artificiais e de expressão ambígua, simultaneamente íntimos e irreconhecíveis. São presenças que nos interpelam e assombram ao longo de todo o percurso expositivo.
A escultura insuflável GAG, um balão negro, tenso e opaco, ocupa o espaço como um corpo prestes a rebentar. A imagem é clara na sua ambivalência: tanto convoca um sistema fechado prestes a colapsar como remete para a violência de tudo o que é sufocado na vida doméstica. Nela são materializados todos os silêncios e omissões que acontecem no seio familiar. O título é também revelador: a palavra “gag” remete tanto para o gesto de sufocar (o engasgar físico ou simbólico), como para o objeto usado em práticas sexuais de dominação, onde o prazer se cruza com a contenção e a violência. Ao convocar esse universo, a escultura relaciona a família a um dispositivo que muitas vezes sufoca a sexualidade.
O vazio é tornado monumento em Picket Fence (2025). Dois moldes, em cimento, de buracos escavados pelos próprios artistas erguem-se como esculturas que, elevadas em plintos, assumem a forma de bustos. É uma operação que dá corpo à ausência e que pretende materializar o vazio. Ao lado, três excrementos fundidos em estanho funcionam como pequeno relicário. É uma homenagem aos três cães que acompanham Dave e Tony, presenças quotidianas, leais e afetivas que os seguem para todo o lado. Juntos, os dois bustos e os excrementos, propõem um retrato de família contemporâneo e não normativo: vestígios íntimos que dão corpo à perda, à memória e ao amor.
A linguagem visual de Dave and Tony conjuga o trágico e o cómico numa estética deliberadamente artificial. O humor e a teatralidade parecem operar como estratégias de distanciamento e sobrevivência.
A questão do legado surge na instalação Graves (2025), onde duas sepulturas com os nomes dos artistas, gravados nas cruzes, marcam o chão da galeria. É uma ironia lúcida que encena uma morte simbólica, enquanto antecipa o desejo de permanecerem juntos na morte como na vida: lado a lado. A instalação reclama o direito a um lugar na terra, um gesto que recusa o apagamento mesmo após a morte.
Family Portrait inscreve o corpo queer num território marcado por omissões, expetativas e pactos de silêncio, expondo o conflito entre pertença e exclusão. Os artistas regressam à família para falar de perda, luto e trauma. E ao desmantelarem a idealização da família como espaço seguro e estruturado, revelam-na como um campo de forças instável, onde amor, medo, desejo e trauma coexistem. Há coragem em voltar ao lugar que nos feriu, não para o habitar, mas para o reescrever com outras formas de pertença.

1 Van der Kolk, B. A. (2015). The body keeps the score: brain, mind, and body in the healing of trauma. Penguin Books. Pag. 36
BIOGRAFIA
Laurinda Branquinho (Portimão, 1996) é licenciada em Arte Multimédia - Audiovisuais pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Estagiou na Videoteca do Arquivo Municipal de Lisboa onde colaborou com o projeto TRAÇA na digitalização de filmes de família em formato de película. Recentemente terminou a Pós-graduação em Curadoria de Arte na NOVA/FCSH onde fez parte do coletivo de curadores responsáveis pela exposição "Na margem da paisagem vem o mundo" e começou a colaborar com a revista Umbigo.
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