article
Paulo Brighenti em Três Estações Nocturnas, na Baginski Galeria/Projetos
DATA
02 Mar 2018
PARTILHAR
AUTOR
José Pardal Pina
Livros são papéis pintados com tinta. A pintura é tinta espalhada sobre a tela. É este o princípio básico do formalismo que reduzia a arte à sua materialidade: tinta, tela, ferro, pedra, grafite. A arte era, portanto, a livre exploração dos limites físicos e expressivos…

Livros são papéis pintados com tinta. A pintura é tinta espalhada sobre a tela. É este o princípio básico do formalismo que reduzia a arte à sua materialidade: tinta, tela, ferro, pedra, grafite. A arte era, portanto, a livre exploração dos limites físicos e expressivos dos materiais, das pinceladas, da cor e da textura, atribuindo a lógica do plano à necessária lógica racional da pintura. De um modo geral, são estas as premissas que Clement Greenberg viria a cimentar como princípios de grande parte da arte modernista e que viriam a culminar com espantosa realização nas pinturas performativas de Pollock.

Contudo, o dogmatismo formalista, que circunscrevia a arte precisamente a essa racionalidade lógica, começou a ser fortemente contestado para se abandonar, durante a década de 70, em prol de uma maior liberdade criativa e uma abertura de visões e interpretações. Ainda que formalmente certa pintura nos remeta para o preceituário formalista, há sempre uma profundidade que rasga a planaridade e consubstancia volumetrias mentais, conceptuais e estéticas subjetivas. Até para os próprios pintores que exploram os materiais e sistemas internos da pintura, outorgar-se-lhes uma visão formalista pode ser simplificador. Há sempre mais qualquer coisa contida para lá da aparência da forma.

Em Três Estações Nocturnas Paulo Brighenti recupera esta ambiguidade e paradoxo do formalismo para o debater entre a narração sobre quem se apoia (Luís Veiga Leitão) e o prazer de pintar e explorar materiais. Se é certo que as obras expostas reportam para as composições formais e jogos desta disciplina, também é certo afirmar que o peso – o inominável peso – que sugerem são manifesto de uma dimensão intuída que vai para lá de uma análise meramente formal, objetiva. Porque o peso da criação, a contenção de um génio criativo numa massa agrilhoada que é o corpo, é algo que Brighenti tenta investigar socorrendo-se do poemário de Luís Veiga Leitão.

Este poeta e artista, lembre-se, privado da liberdade de expressão pelo repressivo Estado Novo, construiu mentalmente a obra Noite de Pedra e apenas a verteu para o papel quando libertado. Resistência, vazio, solidão, repetição, monotonia, são estados que trespassam as palavras sobre papel de Veiga Leitão e a tinta arrastada e pastosa das peças de Brighenti. O linho perde a fluidez de cortinado. A encáustica e a tinta a óleo firmam uma rigidez no pano. Flores brancas despontam em tintas sujas e escurecidas. Apenas a pasta amarela sobre os búzios oferece a hipótese remota de alegria e esperança; o mar ao fundo – truque ilusório dos sentidos.

Três Estações Noturnas entende-se melhor como um exercício de interpretação plástica das palavras de Veiga Leitão. Nem é extremamente formal, nem anti-formal. Não recusa a narrativa de em quem se firma, nem as literaliza para dar exclusivo corpo à matéria. É, talvez, o que se poderia designar de formalismo moderado, de acordo com o pensamento de Nick Zangwill. Mediante as composições pictóricas, Brighenti emula o sentimento estético que, entre outros, se leem nos seguintes versos:

 

“(…) deram-me uma tinta preta

(nuvem negra dum fogo posto)

e meteram-me no tinteiro…

Na tinta, afogo as mãos, o rosto,

o meu corpo inteiro:

 

 A força, o canto, a voz que encerra,

ninguém, ninguém pode afogar

– como as raízes da terra

e o fundo do mar.”

 

Luís Veiga Leitão, Incomunicabilidade, in Noite de Pedra, Porto, 1955

 

A exposição pode ser vista na Baginski Galeria/Projetos , Lisboa, até 10 de março.

BIOGRAFIA
José Pardal Pina é Editor Adjunto da Umbigo desde 2018. Formação: Mestrado Integrado em Arquitetura pelo Instituto Superior Técnico, Universidade de Lisboa; Pós-graduação em Curadoria de Arte pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa. Curador dos projetos Diálogos (2018-2024) e Paisagens (2025-) na Umbigo.
PUBLICIDADE
Anterior
article
Em torno do refúgio do amanhã na exposição «Unbuilt Memories» de Didier Fiúza Faustino
01 Mar 2018
Em torno do refúgio do amanhã na exposição «Unbuilt Memories» de Didier Fiúza Faustino
Por Manuela Synek
Próximo
article
Estreia “The Chair”
02 Mar 2018
Estreia “The Chair”
Por Cabeça