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Podia pintar uma flor qualquer
DATA
16 Ago 2024
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AUTOR
Maria Inês Augusto
Com obras de Pedro Liñares, Pedro Barassi, Mariana Malheiro e Pedro Zhang, Monitor apresenta, pela segunda vez, em Lisboa, um olhar sobre diferentes abordagens contemporâneas da prática da pintura e, mais concretamente, da figuração. Quatro anos depois, e com o mesmo ímpeto investigativo, a galeria…

Com obras de Pedro Liñares, Pedro Barassi, Mariana Malheiro e Pedro Zhang, Monitor apresenta, pela segunda vez, em Lisboa, um olhar sobre diferentes abordagens contemporâneas da prática da pintura e, mais concretamente, da figuração. Quatro anos depois, e com o mesmo ímpeto investigativo, a galeria apresenta agora Pequenas Notas Sobre Figuração II – exposição marcada pela multiplicidade de técnicas e práticas dos vários artistas mas, também, por uma perspectiva unificadora, que os aproxima, tanto na investigação quanto nos processos de execução.

Quatro jovens pintores partem dos seus arredores imediatos – sejam eles reais, ao alcance de um braço, ou provenientes de um universo onírico – e compoẽm uma diversificada, mas harmoniosa, mostra de possibilidades e reflexões. É proposto, de forma conjunta, um estado possível das coisas, ou coisas possíveis num determinado estado, um convite ao testemunho de desdobramentos do indizível, do sensorial, de presenças subtis que aproximam e que nunca se encerram em si mesmas.

Comecemos por Pedro Barassi. A sua investigação e produção artística é caracterizada por um fluxo cíclico de momentos de onde nascem grupos de pinturas. É raro que opere dentro das limitações de uma série contínua e que dedique tempo prolongado a um único tema. É, na verdade, o factor coincidência, o facto de o artista estar em determinado lugar e outra coisa qualquer também, que, nalgum momento, faz sugir o motivo. Barassi demonstra particular interesse em incorporar elementos interpretativos que completam os sentidos da sua obra. De forma mais ou menos consciente, representa, através da força da sua pintura, não apenas a imagem, mas aquilo que pode ser um cheiro, um som, dor e outras sensações que projecta e vive ao longo do seu processo criativo. Parte de uma delimitação inicial feita através de desenho na tela, para criar pinturas que não são uma representação literal, mas sim a junção, uma interseção, entre uma sensação, uma memória fragmentada e a sua impressão subjetiva de alguma coisa. Transita entre interesses de uma forma não linear e cria, a partir do espanto de quem se consegue sempre voltar a maravilhar, obras onde processa e materializa sensações e emoções.

Em diálogo sobre a exposição, esclarece que a sua prática artística é fundamentada numa “vigilância constante, onde a coincidência desempenha um papel crucial”. Essa constante renovação é uma estratégia deliberada para se manter atento e aberto às infinitas possibilidades que o mundo lhe oferece. Absurdos, novas disposições, luzes, corpos, incidem diretamente no seu sistema nervoso e dão origem a propostas estéticas que se ancoram no território dos “transbordamentos e das continuidades”[1]. É guiado tanto pela vontade quanto pela arbitrariedade – exemplo disso é, como partilhou, que a decisão de pintar uma figura humana pode surgir simplesmente pelo facto de ter passado um longo período sem o fazer – “Tudo é motivo para pintar”[2].

Objetos em cruz (2019), Estúdio (2023) e Azul memória (2024), obras que fazem parte desta exposição, derivam de momentos distintos, mas têm, à semelhança do que acontece com outras obras de diferentes ciclos, um ponto comum para onde convergem. Neste caso, Barassi, fala de uma geometria primordial (cruz, círculo e canto) enquanto fio que amarra as três pinturas. Nascem de uma força individual, mas, também, de contágios que transbordam e se desdobram criando uma linguagem plástica própria.

O que lhe impulsiona novos questionamentos e propostas é a síntese orgânica entre o acaso e o processo metodológico que, embora aparente ser impreciso, é profundamente intencional e, diria até, necessário na sua essência. Não há uma limitação rígida ou regras definidas nas obras apresentadas, mas o método ocupa, na sua estrutura, um espaço central, muito mais do que os próprios temas em si. A pintura é o centro gravitacional, o pólo magnético que atrai e organiza, mas, ao mesmo tempo, não se encerra em si mesma. O artista expande e incorpora outras formas de expressão orientadas por um impulso sensorial nas suas criações, traçando um percurso de uma obra para outra, criando um organismo vivo, em continuidade.

A produção artística de Pedro Liñares está, de forma análoga, relacionada com a investigação levada a cabo por Pedro Barassi, na medida em que ambos têm o universo circundante como fonte primária de criação e percorrem um caminho quase imposto pela circunstância.

Tive, a propósito desta exposição, a oportunidade de visitar o seu ateliê (que partilha com Pedro Barassi), para falarmos sobre o seu trabalho, sobre as obras que apresenta nesta exposição e outras em que já está, imerso e de forma frenética, a trabalhar. Em poucos minutos o artista apresenta-me aquilo que parece ser um pequeno banco adaptado, estofado, com um tecido bordado, com a representação daquele que é imediatamente identificado como o vaso de flores que está presente na Monitor – ou pelo menos uma versão, uma reinterpretação do mesmo – Imagem do vaso de flores, 2024. Descrevo este momento para – e aqui imprimo-me o direito de, de alguma forma, simplificar (sem lhe retirar a complexidade adjacente) – descrever o seu processo criativo e de pesquisa, que se distingue por uma sequência quase ritualística: banco – representação do vaso – desenho do vaso – pintura do vaso. No seu ateliê, Linãres explora, pelo meio de diferentes estilos e técnicas, o potencial expressivo da pintura através da apropriação[3]. Interessa-lhe expandir e dar continuidade a qualquer coisa que não começa nele, e não tem qualquer intenção de a encerrar na sua obra. As suas pinturas são, assim, representações de objectos, imagens, fragmentos, detalhes que, por razões várias e aparentemente arbitrárias, capturam o seu interesse – um filme, um rótulo, um livro, um sol-resplendor. Liñares não escolhe de forma deliberada; pelo contrário: “Eu poderia pintar uma flor e, para isso, inventá-la. Mas tenho-a aqui, o que acaba por restringir as hipóteses de representação. São as coisas que vejo, que estão perto, que definem o caminho”.  Essas reinterpretações que leva a cabo envolvem, frequentemente, uma desconstrução do objeto (ou da sua imagem). É por meio da transformação ou até destruição que o artista dá origem a algo novo, a uma visão renovada, embebida numa espécie de velatura de sonho própria do seu trabalho.

Como Mattia Tosti menciona no texto que acompanha a exposição, a abordagem artística de Liñares é profundamente enraizada no desenho, utilizando-o tanto numa fase preparatória, quanto nas etapas finais da pintura – Imagem da Prosa do Observatório (2024)[4]. Esta série, composta por 9 pinturas, é inspirada no livro Prosa do Observatório, de Julio Cortázar. Aqui, o artista olha em particular para o ensaio fotográfico dos observatórios astronómicos de Jaipur e Delh que o autor fez durante a sua viagem pela Índia. Mais uma vez: autor – livro – fotografia – desenho – pintura. Liñares transita o seu interesse para um fundo abstrato, meio vazio, que vai acolhendo espessas camadas, manipuladas por pincéis ou ferramentas pontiagudas, num exercício em que o que emerge é determinado tanto pela subtração quanto pela preservação, numa constante investigação da natureza da pintura. Através de gestos energéticos que repete no seu ateliê, do seu espírito inquieto, o vivido, o sentido, o lido e o visto são manipulados para criar, convertendo o fim de algo no início da sua pintura.

Também Mariana Malheiro estabelece, através da sua prática artística, um diálogo íntimo entre as duas linguagens visuais – pintura e desenho. O seu processo criativo, esclarece a artista, é sempre inaugurado por um esboço, que funciona como uma espécie de crivo: a ideia ou prossegue para se transformar numa pintura, ou é descartada. Arquivos, livros, fotografias pessoais são os pontos de partida para explorar possíveis narrativas. Interessa-se especialmente por fotografias a preto e branco, onde encontra uma maior liberdade expressiva: “livre da paleta cromática, a cor não me é imposta, o que me permite trabalhar com mais foco em elementos específicos, como um relógio, uma peça de mobiliário”[5]. É a forma que a fascina, que serve de mote para o nascimento de novas histórias.

Na exposição Pequenas Notas sobre Figuração II, Malheiro apresenta três obras – Helena (2023) e, da série Bruxas e Curandeiras, (Colheita) e (Crescimento), 2024. Helena (2023) faz parte de um conjunto de obras criadas pela artista ao longo do ano e que permanece em continuidade. Marcada pelo facto de estar retratada apenas uma figura – contrariamente às povoadas composições com que nos tem habituado – esta série é assente numa investigação com interesses tanto conceituais quanto formais. Malheiro começa com uma camada de tinta, geralmente monocromática, densa, e trabalha-a, desenhando por cima, criando e explorando um universo feminino, de ambiente “doméstico enquanto lugar de escolha e não de lugar restrito”[6]. Retrata momentos que não deixam de ser de solidão e introspecção[7], momentos privados, como se só nos fosse permitido ter acesso a um breve instante, a um fragmento de uma narrativa de um mundo interior, sensível, que é, de alguma forma, inacessível na sua totalidade para quem vê. Todas estas mulheres de Malheiro têm vindo a construir uma narrativa com aura íntima, onde a artista une o mundo visível e a matéria, criando uma ponte, também, refletora da sua força interior.

Bruxas e Curandeiras, é uma série concebida inicialmente para um projeto editorial da Umbigo[8]. Investigação singular no trabalho da artista, coloca figuras femininas em conexão direta com o mundo natural. Ao fazê-lo, alude ao poder transformador da natureza e à íntima relação que estas mulheres têm com o mundo ao seu redor, explorando não apenas o carácter feminino, mas também o seu potencial simbólico e narrativo. Cada obra desta série retrata um momento distinto – a recolha, o laboratório, ou a estufa – remetendo-nos para um universo de cuidado e aproveitamento de elementos vegetais.

Figuras são traçadas sobre densas camadas de tinta fresca com a mesma soltura de um esboço, procurando uma aproximação ao desenho, trazendo densidade e profundidade ao mundo que cria de pessoas e elementos. Narrativas são erguidas da relação da artista com a matéria, do seu prolongamento para imagens que contam histórias que palavras não conseguem.

O trabalho de Pedro Zhang emerge, também, de idealizações de um mundo natural. Influenciado pelo ambiente onde cresceu e pelas suas memórias, desenvolveu uma profunda e íntima ligação com a natureza. Transcende a necessidade de representar fielmente o real e trabalha a partir de estímulos do quotidiano, criando paisagens que exploram a fronteira entre o real e o imaginário, o passado e o presente, o material e o etéreo.

Em conversa diz que procura representar figuras, ou formas, no seu estado mais essencial e puro, rejeitando a necessidade de retratar todos os detalhes. O fim de uma aurora (2024) é exemplo da sua intenção em dar a ver e fazer nascer, primeiro, determinado elemento, i.e. montanha – figura submersa em água – céu (aurora). Há uma descoberta à medida que o processo vai acontecendo, vão-se criando momentos necessários de fazer surgir, numa procura pela essência das formas nas suas contínuas transformações.

A alegoria da criação (2024), é um auto-retrato em o artista se coloca num espaço idílico, no universo mágico que ergueu, natural, íntimo, de memórias vagas, e onde se apaga num gesto de tomada de consciência de que ele próprio não se sente parte integrante. Coloca-se sempre na posição de observador e, de uma memória distante, onírica, desencadeia o desejo de pintar. Mas a origem e a natureza dessa lembrança permanecem nebulosas, como se fossem fragmentos de um sonho que não se sabe se é real ou imaginado – O voo (2024). Com ampla carga matérica e de cor, utiliza uma paleta distinta de tons terrosos e escuros para representar, de forma idealizada, a natureza. Assistimos a um encontro íntimo entre o visível e o invisível, a um eco de um tempo imemorial que pulsa distante e sereno.

Os quatro artistas mostram, em Pequenas Notas Sobre Figuração II, através da figuração, pinturas-hipóteses, traçando um mapeamento intuitivo que nasce da visão de cada um. A galeria Monitor reabre as portas dia 4 de Setembro e a exposição pode ser visitada até ao final do mês.

 

[1] Artista em conversa sobre a exposição

[2] Artista em conversa sobre a exposição

[3] Folha de sala

[4] Folha de sala

[5] Artista em conversa a propósito da exposição

[6] Artista em conversa a propósito da exposição

[7] Folha de sala

[8] Umbigo #88 – “Biofilia / Liberdade”

 

Nota: a autora não escreve ao abrigo do novo AO

 

BIOGRAFIA
Maria Inês Augusto, 34 anos, é licenciada em História da Arte. Passou pelo Museu de Arte Contemporânea (MNAC) na área dos Serviços Educativos como estagiária e trabalhou, durante 9 anos, no Palácio do Correio Velho como avaliadora e catalogadora de obras de arte e coleccionismo. Participou na Pós-Graduação de Mercados de Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa como professora convidada durante várias edições e colaborou, em 2023 com a BoCA - Bienal de Artes Contemporâneas. Desenvolve, actualmente, um projecto de Art Advisory e curadoria, colabora com o Teatro do Vestido em assistência de produção e tem vindo a produzir diferentes tipos de texto.
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