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Prolongando o encontro: Anas por Gäetan
DATA
02 Set 2025
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AUTOR
Diogo E S Dietl
Ricardo Valentim organiza e acolhe na sua morada "Anas", uma mostra de retratos de Ana Jotta por Gaëtan. São inúmeros os paralelos e aproximações entre os dois, amigos dos tempos em que ambos passaram brevemente pela ESBAL.
Um primeiro olhar sobre a obra de Gaëtan parece dar-nos uma ideia do assunto da mesma, mas talvez iluda na aparente percepção da sua totalidade. A auto-representação, foco absoluto desde o início dos anos 1990, estando presente quase desde o começo, fez-se por vezes acompanhar de outras matérias. Porém, antes do retrato, Gaëtan chegou ao papel. Para a Galeria Módulo (Porto) e de seguida na Galeria Nacional de Arte Moderna, em 1977 e 1978, criou vários Desenho-objecto, série de construções em papel torcido e corda de sisal, que entrelaçadas, mínimas e vagas ensaiavam abrir leves perturbações sobre a arquitectura. Instantes de volúveis artefactos e quase apagamento para Gaëtan, que se restringe ao vulto.
Em 1979, na colectiva Arte Actual Portuguesa, o artista pendura duas amplas folhas de papel de embrulho, como desinsuflados cones suspensos. Se neste gesto eficaz se pode sentir uma aproximação escultura de Robert Morris, e na experimentação material dos Desenho-objecto talvez surja um vislumbre da estratégia da Verb List de Richard Serra, compreende-se ao sondar estes momentos reambulares que Gaëtan foi pontual e preciso nas intervenções. Actuando sobre o papel sem grafite, óleo nem qualquer outro intermediário para as suas mãos e o seu corpo, parece estar a preparar o suporte para o desígnio porvir, não tanto por purificação, mas apreendendo-o e dando-se a entender, em rituais que apesar de obscuros certamente foram mais mágica que exorcismo. No mesmo ano, na segunda passagem individual pela Módulo (na chegada da galeria a Lisboa), Gaëtan encerra o ciclo de operações com um templo soturno: numa antecâmera, quatro cordas semelhantes, de papel enrodilhado, pendem junto às paredes, do tecto ao chão; no aposento do fundo, sobre um austero altar repousa mais uma corda, "apodrecida por enterramento"1.
A base pronta, falta o tema. Três Utopias Bárbaras, na Diferença (1980), foi a terceira individual, e o cerimonial continuou. Sobre a parede, Gaëtan desenha (agora sim!) três figuras análogas, de aura monolítica, ainda que se prevendo nelas humanidade. Os riscos a carvão sobrepõem-se em espessura, velocidade e fervor, e conhecendo os retratos prestes a despontar identificamos as qualidades elementares e instintivas desse tempo. O público era convocado através de um texto a pensar, olhar, agir sobre as figuras pré-antropomórficas, ajudando-o a imprimir o sopro que resta. No ano seguinte chega a auto-representação.
Parecem-me estes apontamentos significantes para dar conta de uma obra artística muitas vezes caracterizada como obsessiva (e tê-lo-á sido também porventura), que, porém, emergiu de uma fundação experimental, criteriosa e diacrónica. Se é certo que a modéstia do artista garantia "uma forte dose [...] de não-programado" no trabalho2, o cuidado com títulos de obras e exposições, os motes pensados para conjuntos de trabalhos, a aplicação categórica de referências literárias, cinéfilas, da música, da História da Arte, o pensamento rigoroso na montagem de cada exposição, são evidência de uma atenção diligente ao exercício criativo. Falta notar o preceito basilar do desenho de Gaëtan: sendo destro, decidiu usar sempre a mão esquerda.
Ricardo Valentim organiza e acolhe na sua morada Anas, uma mostra de retratos de Ana Jotta por Gaëtan. São inúmeros os paralelos e aproximações entre os dois, amigos dos tempos em que ambos passaram brevemente pela ESBAL. A primeira entrada nas listas de exposições de Jotta é Gaetana, Sala de Estar (Galeria EMI – Valentim de Carvalho, 1985), apresentação com Gaëtan e (Eduardo) F.M. Em 1987, Gaëtan inaugura Une Chambre en Ville na Diferença e, em 2022, Ana inaugura Une Chambre en Ville na Cité internationale des arts, Paris. Em 2005, Gaëtan assina um ensaio no catálogo da retrospectiva Rua Ana Jotta (Serralves). E, em 1982, Gaëtan desenhou e pintou a amiga, encontro que chega logo após o desembarque na auto-representação, e um dos desvios notórios desse percurso.
Há um apreço pelo doméstico em Gaëtan: larga porção da sua obra nasce do espelho, mas também em mesas e bandejas, cadeiras e poltronas, galos e lulas a manjar. Parte de si para mobiliário (Toucador, 1981/85), de mobiliário para desenhos (O Carnaval dos Animais, 1986), de desenhos para mobiliário (Plural Majestático, 1981/85), e de desenhos de mobiliário para si (Gaitão, 1987), num circuito em espiral que revela o conforto de quem está seguro no seu lugar. O que está em casa, por perto, tem consigo disponibilidade, a mesma que o fez escolher tantas vezes o modelo mais acessível. O à-vontade observa-se ainda na abertura a brincar e maquinar (Vissi d'Arte, 1958/85, Nmkitpah, 1989). Já quando contrata outro modelo, este é invisual – Gaëtan escapa-se à inspecção do retratado, que de resto enquadra por fragmentos, sem face (Sermão a Jan Sanders, 1984), estabelecendo o comando necessário para a breve saída. Por entre tudo, o ponto mais próximo em termos formais da auto-representação, é quando desenha Jotta.
Gaëtan afirmou várias vezes que ser o próprio o objecto dos trabalhos não era de somais importância (tanto que evitava a expressão "auto-retrato"), a essência estaria para lá disso. Aceitando-se de bom grado que tão vasta empreitada é mais que um inventário de mergulhos no ego, um escape nostálgico ou uma fatigante investigação anímica, a verdade é que estas "Anas" têm um cunho distinto. O traço parece mais ponderado, cuidado, se bem que também menos resoluto. Quando o artista se representa, é difícil ler-lhe o rosto, sempre expressivo, mas vedado, franco com um laivo de ironia, hipnotizado por pensamentos que se esfumam, buscando algo com o olhar. Nos desenhos e pinturas com Jotta, Ana repousa ou cogita alheada, atrás da mão, imperturbável sem quebra de gravidade ou vibração. Quando Gaëtan se desenha de olhar frontal, observa-se/nos; o olhar frontal de Jotta observa apenas Gaëtan. De resultados diferentes, o que se acrescenta ou sublinha ao oeuvre integral?
Se ao acompanhar a ladainha de Gaëtans e Gaëtans parece fácil sugerir um agarrar do tempo, títulos como Photomatou, A Última Morada e até La vue de Delft (que alude a uma fatídica cena em Proust mais que a Vermeer) são peremptórios na consciência do breve, e ainda assim os esqueletos quase transparentes não se deixam ver. Nas Anas a sinceridade é mais presente.
Absolutamente por si está Anunciação. Díptico pintado a têmpera acrílica, de dimensões majestosas, inspirado no ponto de partida da narrativa de Jesus, reportando a longa tradição. Na versão de Leonardo, o anjo Gabriel está à esquerda e a virgem Maria à direita. Aqui, temos Gaëtan à esquerda e Ana à direita, respectivamente sobre fundos monocromáticos cinza e laranja. Evitam-se, não com embaraço, mas brandura e destemor, num particular concílio mudo que atrai e rejeita, a que nos falta cumplicidade para comunicar.
Anas conta 14 Anas, a que se junta um Gaëtan e duas fotografias, com outra Ana e outro Gaëtan a retratarem-se, na mesma moldura. Um projecto de Ricardo Valentim que renova o entendimento sobre um corpo de trabalho que se afigurava bem demarcado e afinal, Desenhado à faca3, persiste em entranhar. A mão, cega e prudente, traçou continuamente e sem fim variações sobre um tema (lembrar que a três séries Gaëtan chamou A Arte da Fuga), que não é exactamente o que vemos. Capturou e deu a entrever paixão e espírito, não à vista ou no âmago, mas logo sob a epiderme, num ofício de controlo extraído ao "improviso" - nome de várias das Anas. É uma obra íntima, insistente silêncio contra a morte, ou a folha inutilizada.
Anas, de Gaëtan, está patente na Rua de São Vicente 19 (Lisboa) até 6 de Setembro.

1Gaëtan: instalações [Material gráfico], 1977-1979, Biblioteca de Arte Gulbenkian
2Entrevista a Gaëtan por Raquel Santos, Entre Nós, 2005, RTP Arquivos
3Gaëtan, Quantum Satis, 1981 (colecção Ana Jotta)
BIOGRAFIA
Diogo ES Dietl, licenciado em História pela Universidade Nova de Lisboa, acompanha a criação artística contemporânea desde 2012, atuando ocasionalmente nas suas margens através da escrita, assessoria, divulgação, produção e co-curadoria.
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