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After Smoke and Mirrors, no Centro de Arte Oliva
DATA
31 Mai 2025
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AUTOR
Mariana Machado
“A inconformidade da experiência humana com as condições do mundo atual capta uma incompatibilidade turbulenta do nosso momento: a condição da planetaridade. (...) O planetário ainda não foi adequadamente espacializado, o que significa que é um conceito não situado, sem um local de interação operacional. O planetário ainda não foi mundializado.”1
“Como um jogo de fumo e espelhos” é a forma como Michael Taussig, apropriando-se de Alexandria Ocasio-Cortes, descreve o ilusionismo inerente ao discurso mediático e às suas políticas em torno das alterações climáticas. Centrando-se numa conjugação de mimética (espelhos) e de um fumo misterioso e irritante, nas suas palavras, propõe-se a contrariar este movimento com um igualmente misterioso e mimético jogo: “quando a natureza contra-ataca, reencantada, cada dia mais estranha, de tal modo que a ampliação da faculdade mimética passa a incluir aquilo a que chamo o domínio do não-domínio e, com isso, a possibilidade de mutualidade em vez da colonização da natureza e de nós próprios.”2 Enquanto movimento de reencantamento, é nesta linha de orientação que a exposição After Smoke and Mirrors, com curadoria de Sara Castelo Branco no Centro de Arte Oliva, citando diretamente o pensamento de Taussig, enquadra propostas artísticas variadas para propor modos alternativos de ver enquanto mundos possíveis e novas ecologias.
Iniciando o percurso de uma forma bastante literal, a peça de vídeo Women and Smoke, de Judy Chicago, centra-se precisamente na ideia do fumo enquanto potenciador de um movimento revolucionário e feminista sobre um determinado espaço, onde performers interagem com ele de forma não-interventiva. Se na metáfora do autor o fumo representa a intervenção difusa, no trabalho da artista vemos um constante jogo de cor, textura e diálogo entre performers e o espaço mediado pelo fumo enquanto mobilizador de uma interação não-violenta. Será precisamente depois deste jogo de fumo que encontraremos uma série de recortes mitológicos, onde a capacidade de reescrever o mundo que criamos terá de se centrar em função da destruição ecológica que claramente estamos a promover. Ora, se o jogo é de fumo, é igualmente de espelhos, e para Taussig este elemento denota a importância que dirige à mimesis (representação) enquanto forma de controlo e, ao mesmo tempo, mecanismo de resposta. Nesse sentido, torna-se notório que não só o trabalho de Judy Chicago, mas grande parte das intervenções artísticas aqui apresentadas sejam trabalhos em vídeo: o mecanismo de representação por excelência. Se o conceito de construção de mundo se torna cada vez mais relevante na sua denotação do caráter construtivo da significação que atribuímos à realidade, este sublinha igualmente a extrema relativização ontológica desses filtros percetivos que permitem a sua plasticidade construtiva. Por outras palavras, não existe um mundo, mas mundos constantemente construídos, ou como refere Nelson Goodman, “para muitos propósitos, descrições, representações pictóricas e percepções correctas do mundo, os modos-como-o-mundo-é, ou simplesmente versões, podem ser tratados como os nossos mundos.”3 É esta liberdade e plasticidade construtiva que permite olhar para o mundo do outro para reescrever o mundo do eu pelas suas necessidades pragmáticas e concretas. O pensamento e a criação artística adquirem assim, em equivalência paralela, o caráter especulativo que lhes permite trabalhar a possibilidade, assente num sistema de representação diferente do eu, mas interagindo, através (por exemplo) do vídeo e da construção mimética, diretamente com a atualidade.
Neste sentido, encontramos, por exemplo, a peça Liquid Transfers de Diana Policarpo, onde a representação usualmente centrada no sujeito humano é deslocada para o mundo vegetal usualmente encarado enquanto recurso natural. É igualmente visível nos outros trabalhos em vídeo, de Jane Jin Kaisen, Laura Huertas Millán, Riar Rizaldi, Saodat Ismailova e Abtin Sarabi, como esta ferramenta alicerça precisamente a capacidade de dar a ver o não-visto, de reconstrução da grelha epistemológica, do mundo. Seja através da representação de cerimónias e rituais ou da construção direta de formas de perceção alternativas, o caráter representacional do trabalho em vídeo surge como recurso definidor do potencial construtivo de um mundo para um sujeito: “A modelação contrafactual da trindade - incluindo veículos estéticos que instigam quadros de experiência reconfigurados - servem de órgãos para a construção de mundos. Embora ainda não totalmente atualizados como um mundo concreto, os pontos de vantagem (posições) criados através da atividade de modelação contrafactual constroem cenários mentais úteis através dos quais se podem comparar mundos.”4 Dadas as claras limitações do exercício estético enquanto experiência especulativa não-atualizada, a capacidade de apresentar construções contrafactuais permite o constante desafio das normatividades vigentes. O desastre ecológico e o confronto entre o ser humano e a sua finitude requerem desse modo uma radical restruturação do mundo e a produção artística, que, na sua certa restrição especulativa, se modela enquanto importante ‘sítio de construção para mundos possíveis’. Ora, nesse sentido, além da importância já direcionada ao vídeo, a própria modelação de espaços e dispositivos permite a projeção de um mundo que se dirige à sua construção. São exemplos as peças Sonic Materialities, de Andreia Santana, e Montanhas Fumegantes, de Hugo de Almeida Pinho, onde a primeira modela o dispositivo e a produção sonora como um exercício estético e a segunda, retornando o elemento do fumo que abre e nomeia a exposição, despoleta a sua criação através de um mecanismo tecnológico descentrado do humano. O desastre ecológico e a necessidade de pensar o planeta enquanto totalidade conduz a narrativa de toda a exposição na procura de novas epistemologias. A questão que resta assenta, então, naquilo que podemos ver ou retirar dos outros mundos para o mundo melhor que queremos construir.
A exposição pode ser visitada no Centro de Arte Oliva até dia 15 de junho.
1 Reed, P. & Bawa-Cavia, A. (2020) Site as Procedure as Interaction. Em Construction Site for Possible Worlds, p. 85. Tradução Livre
2 Taussig, M. (2020) Mastery of Non-Mastery in the Age of Meltdown, p. 3. Tradução livre
3 Goodman, N. (1995). Modos de Fazer Mundos, p. 41
4 4 Reed, P. & Bawa-Cavia, A. (2020) Site as Procedure as Interaction. Em Construction Site for Possible Worlds, p. 87. Tradução Livre
BIOGRAFIA
Mariana Machado (2000) nasceu no Porto e estudou Cinema na Escola das Artes - Universidade Católica Portuguesa. Neste momento, frequenta o Mestrado em Artes Digitais e Sonoras, também na Escola das Artes. É artista e investigadora, interessando-se acima de tudo por manifestações que articulem a imagem em movimento num contexto entre o cinema e a arte contemporânea, assim como pelas potencialidades artísticas de novas tecnologias e suas articulações com outras materialidades.
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