O conceito de ‘realismo capitalista’ alberga, para Mark Fisher, um estado coletivo contemporâneo onde a capacidade de pensar um futuro para a sociedade que não passe pelo capitalismo é tido como irrealista e onde a sociedade neoliberal assenta, apesar das suas fragilidades, enquanto sistema de mal menor. O diagnóstico proposto por Fisher direciona-se, assim, para uma incapacidade de pensar no futuro, onde o ‘fim da história’ não representa um dado adquirido, mas um inconsciente coletivo para o qual conseguimos, finalmente, encontrar uma sociedade assente no realismo, um realismo capitalista. Ora, as crises atuais, nomeadamente a evidente crise ecológica, demonstram a incapacidade de pensar num sujeito coletivo sob o realismo capitalista e, ao mesmo tempo, a urgência de o fazer. Como refere o autor: “O sujeito necessário – um sujeito colectivo – não existe, embora a crise, tal como todas as crises globais com que actualmente deparamos, exija a sua construção.”2 A exposição Somos Todos Capitães – 50 anos em liberdade, um projeto curatorial de Paulo Mendes apresentado em três espaços pela cidade de Braga, centra-se concretamente no 25 de abril de 1974, e no seu cinquentenário. Enquanto ponto específico de desdobramento, a tentativa de pensar num futuro parece ser feita necessariamente pelo ressurgimento de um passado negligenciado.
A exposição divide-se em três lugares de natureza muito distintas: o Fórum Arte Braga, o Regimento de Cavalaria nº 6 e o Museu Nogueira da Silva. A forma como a exposição se desdobra parece afastá-la da ideia de um espaço delimitado e alienado da experiência real e quotidiana, funcionando, pelo contrário, enquanto ocupação de espaços onde os objetos artísticos, ao invés de serem simplesmente dispostos para apreciação, são encarados enquanto objetos reais com capacidades de ativação e diálogo com o meio envolvente, tornando-se parte de uma experiência maior e geral. O domínio artístico abstém-se de tentar ser um domínio fechado e separado do real para povoar os espaços quotidianos e aí obter potencial transformador sobre eles. Neste sentido, estes espaços ganham importância ao serem precisamente os lugares ativados e ocupados e com os quais os objetos se confrontarão. Neste sentido, se, por um lado, o Fórum Arte Braga se assemelha ao mais tradicional espaço expositivo, funcionando enquanto coletânea extensa de obras que se interpelam, o Museu Nogueira da Silva surge enquanto espaço expositivo e, coincidentemente, espaço histórico com um passado explicitamente ativado. Figurando agora um polo cultural da cidade de Braga, o museu, outrora casa de António Nogueira da Silva, funcionava enquanto importante centro do salazarismo cultural em Braga, recheando-se não só de obras e objetos que refletiam os valores do Estado Novo, mas também muito diretamente tendo servido de ponto de acolhimento de Salazar para pernoitar. Assim, a figura de Nogueira da Silva e a sua antiga casa figuram não apenas um espaço para expor, mas um espaço cuja densidade histórica permanece para muitos invisível, ainda que presente. Talvez de forma ainda mais direta, encontramos esta ativação de um passado oculto na ocupação do regimento da cavalaria, um espaço aparentemente distante de qualquer propósito artístico, mas fundamental para o 25 de abril de 1974. A subversão deste espaço desenrola-se não só no ato de o ocupar, mas na forma como se levanta a história política que lhe é subjacente, onde, através do objeto artístico, se materializam as invisibilidades históricas que lhe são latentes.
É neste sentido que surge para Mark Fisher o conceito de ‘hantologia’, através do qual caracteriza expressões artísticas sintomáticas de futuros perdidos que, por isso, se alicerçam na necessidade de devolver o passado: “A assombração pode, pois, ser entendida como um luto falhado. Prende-se com a recusa de abrir mão do fantasma ou – o que por vezes pode ir dar ao mesmo – a recusa do fantasma de abrir mão de nós. O espectro não permitirá que nos acomodemos/contentemos com as satisfações medíocres possíveis de recolher num mundo governado pelo realismo capitalista.”3 A conciliação destas duas ideias por parte do autor reflete a coexistência da incapacidade de desenvolver hipóteses de futuro efetivamente disruptivas ao mesmo tempo que, por isso, a expressão artística se redireciona para um passado onde esses futuros ainda eram construídos. Ou seja, o passado surge enquanto momento onde ainda era possível pensar no futuro. O 25 de abril de 1974 aqui parece representar esse papel: a de um momento onde a movimentação política se dirigia para um futuro que, entretanto, ficou esquecido. Desse modo, a articulação desenvolve-se através de obras artísticas quer desse período, quer produzidas no contexto da exposição, que, de alguma forma, remetem para esse momento histórico. De igual forma, se, por um lado, o 25 de abril surge como elemento central de toda a exposição, este não deixa de remeter a uma ideia mais geral de um caminho em direção a uma democracia, ou a um futuro alimentado pela modernidade, interrompido pelo neoliberalismo. Ou seja, à produção artística portuguesa que remete ao 25 de abril alia-se a produção artística internacional que extrapola deste episódio uma luta por um futuro mais geral.
A exposição Somos Todos Capitães – 50 anos em liberdade toma como base o evento histórico do 25 de abril não só como tema narrativo, mas como evento concreto a ser ativado, como forma de restituir uma luta pelos futuros agora perdidos. Ora, essa ativação faz-se na experiência concreta, no pensamento e na ação, e o objeto artístico surge enquanto catalisador dessa transformação. Lembramo-nos de Žižek quando desenvolve o conceito de ideologia e diz: “A função da ideologia não é oferecer-nos um ponto de fuga da nossa realidade, mas oferecer-nos a própria realidade social como uma fuga de um núcleo traumático e real.”4: uma vivência de práticas onde a ideologia é universal, mesmo quando invisível. A necessidade do pensamento encontra-se na necessidade de pensar o novo e esta incapacidade universal permeia toda a experiência. A recolocação de objetos artísticos incorpora, então, a necessidade de radicalmente reconstruir a experiência.
A exposição, concebida e integrada na programação oficial da BRAGA 25 Capital Portuguesa da Cultura, pode ser visitada no Museu Nogueira da Silva, no Fórum Arte Braga e no Regimento de Cavalaria N.6, até dia 29 de junho.
Exposição com a participação de:
Alberto Carneiro, Alfredo Cunha, Álvaro Cunhal, Álvaro Lapa, Ana Hatherly, Ana Jotta, Ângela Berlinde, Ângela Ferreira, Ângelo de Sousa, Anna Bella Geiger, Anna Daučíková, Anna Jermolaewa, António Aragão, António Areal, António Barros, António Olaio, António Poppe, António Rego, Arlindo Silva, Armando Azevedo, Augusto Brázio, Axel Stockburger, Bartolomeu Cid dos Santos, Bárbara Fonte, Berna Reale, Brígida Mendes, Ção Pestana, Carla Castiajo, Carla Filipe, Catarina Simão, Clara Menéres, Claudia Claremi, Cristina Mateus, Daniel Barroca, Délio Jasse, E. M. de Melo e Castro, Eduardo Arroyo, Eduardo Batarda, Equipo Crónica, Ernesto de Sousa, Fábio Colaço, Fernando José Pereira, Fernando J. Ribeiro, Fernando Lemos, Fernando Sánchez Castillo, Fernão Cruz, Filipa César, Francisco Queirós, Francisco Vidal, Harun Farocki, Horácio Frutuoso, Hugo Canoilas, Hugo de Almeida Pinho, Inês Leal, Isabel Ribeiro, Jimmie Durham, João Maria Gusmão + Pedro Paiva, João Onofre, João Pedro Vale + Nuno Alexandre Ferreira, João Tabarra, Joaquim Rodrigo, Jonathas de Andrade, Jorge Pinheiro, Jorge Vieira, José de Almeida Pereira, José de Guimarães, José Dias Coelho, José Feitor, José Luís Neto, Josef Dabernig and Markus Scherer, Józef Robakowski, Júlio Pomar, Kiluanji Kia Henda, Leonel Moura, Leopold Kessler, Lima de Freitas, Maja Bajevic, Manoel Barbosa, Manolo Millares, Manuel Alvess, Manuel Botelho, Manuel Figueira, Manuel Santos Maia, Maria Barreira, Maria Helena Vieira da Silva, Maria José Aguiar, Mariana Gomes, Mário Cesariny, Miguel Carneiro, Miguel Leal, Miguel Palma, Mladen Stilinović, Musa Paradisíaca, Neal Slavin, Nikias Skapinakis, Nikolai Nekh, Nuno Nunes-Ferreira, Nuno Ramalho, Oficina Arara, Patrícia Almeida, Paula Rego, Paulo Catrica, Paulo Mendes, Paulo Nozolino, Paulo Seabra, Pedra No Rim, Pedro Cabral Santo, Pedro Costa, Pedro Gomes, Pedro Tudela, Priscila Fernandes, Rita GT, R.E.P. Group, Rosângela Rennó, Rui Filipe, Sanja Iveković, Santiago Sierra & Jorge Galindo, Sara & André, Sobral Centeno, Susana Mendes Silva, Tiago Baptista, Tibor Hajas, Tito Mouraz, VALIE EXPORT, Valter Vinagre, Vasco Araújo, Vasco Pereira da Conceição, Victor Palla, Yonamine.
1 Fisher, M. (2023). Realismo Capitalista, p. 16
2 Fisher, M. (2023). Realismo Capitalista, pp. 98-99
3 Fisher, M. (2020). Fantasmas da Minha Vida: Escritos sobre Depressão, Hantologia e Futuros Perdidos, p. 53
4Žižek, S. (2008). The Sublime Object of Ideology, p. 45. Tradução livre