Bukhara é uma das cidades continuamente desabitadas mais antigas do mundo, com uma longa tradição de hospitalidade. Situada ao longo da Rota da Seda, a cidade tem vindo, desde o século I, a desenvolver-se como um importante centro comercial e foi admirada por gerações de viajantes pela sua riqueza cultural e intelectual. A nova Bienal de Bukhara, segundo Gayane Umerova, curadora e presidente da Fundação de Desenvolvimento de Arte e Cultura do Uzbequistão, serve uma ambição mais ampla de revitalizar a cidade antiga, fomentando a presença cultural contemporânea em paralelo com os trabalhos contínuos de restauro e preservação. Em consonância com este plano, o arquiteto Wael Al Awar, radicado no Dubai, foi convidado a adaptar o antigo tecido urbano de Bukhara às necessidades do público contemporâneo.
A metodologia curatorial da primeira edição da bienal segue uma abordagem semelhante: todas as obras de arte são encomendas desenvolvidas através de uma estreita colaboração entre artesãos bukharianos de diferentes gerações e artistas contemporâneos. Com cerca de setenta projetos apresentados na bienal, é impossível subestimar a extensão da mediação e da logística realizadas pela equipa para facilitar estes encontros multilíngues e multiculturais. Como descobri, algumas destas colaborações levaram também a práticas coletivas que foram além das exigências imediatas de produção. Para criar a complexa instalação em forma de teia La Sombra Terrestre, a artista colombiana Delcy Morelos e a sua equipa trabalharam com tecedeiras locais, convidando-as a aplicar, em conjunto, técnicas indígenas de tecelagem das Américas, possibilitando assim uma experiência de aprendizagem recíproca.
O conceito da bienal Recipes for Broken Hearts (Receitas para Corações Partidos), idealizado pela sua diretora artística Diana Campbell, aborda os traumas e as ruturas que deixam marcas persistentes nas histórias humanas, materiais e ambientais, propondo assim um entendimento da arte como um simbólico e, ao mesmo tempo, de cura. Uma vez que as crises que exigem cuidado são uma constante na vida humana, as respostas a este contexto pareceram pessoais e variaram naturalmente em termos de media, método e escala. Alguns, como a artista croata Hana Miletić e o duo indiano-inglesa Hylozoic/Desires (Himali Singh Soin e David Soin Tappeser), concentraram-se na deterioração material. Comovida pelo engenho das práticas locais de reparação DIY, Miletić colaborou com os mestres bordadores de ouro Bakhshillo Jumaev e Mukkadas Jumaeva para reparar as fissuras na Mesquita Khoja Kalon com delicados trabalhos em ouro. Os atos íntimos de manutenção doméstica foram, por isso, considerados tão significativos como o restauro de locais históricos. A Hylozoic/Desires trabalhou com Rasuljon Mirzaahmedov, um tecelão de ikat da nona geração, num projeto que homenageia o colapso ecológico do Mar de Aral. A sua tapeçaria de ikat recém-tecida, inspirada em imagens de satélite que mostram o declínio do mar, estende-se agora ao longo do principal canal da cidade.
O título da Bienal, Recipes for Broken Hearts (Receitas para Corações Partidos), refere-se a uma história (entre várias) sobre a invenção do palov, o prato nacional uzbeque de arroz reconhecido pela UNESCO como Património Cultural Imaterial. Segundo esta história, o prato foi preparado pela primeira vez como remédio para um emir de Bukhara, com o coração partido pelo renomado polímata do século I, Ibn Sina (Avicena). Diversos participantes da bienal, incluindo Subodh Gupta e Carsten Höller, exploraram o potencial terapêutico mais amplo da culinária e da refeição comunitária (o palov é tradicionalmente partilhado), enquanto outros revisitaram o vasto legado intelectual de Avicena, incluindo as suas primeiras observações sobre as ligações entre o bem-estar físico e mental. A artista Oyjon Khayrullaeva, radicada em Bukhara, colaborou com Raxmon Toirov e Rauf Taxirov para traduzir as suas colagens digitais em seis painéis de azulejos, cada um representando um órgão vital, instalados em diversos pontos da cidade. A sua reflexão sobre as práticas de cura inspirou-se nos escritos de Avicena, nas experiências de doença e recuperação da sua família e também nas tradições do conhecimento medicinal doméstico.
Outras investigações artísticas na bienal abordaram feridas enraizadas em histórias familiares complexas e estruturas sociais. A artista Taus Makhacheva colaborou com o abrigo para mulheres Oydin Nur na sua investigação sobre formas de solidariedade e apoio nas comunidades femininas, que possibilitam a transformação e o empoderamento. A sua investigação materializou-se numa série de objetos de metal: frutos invertidos em grande escala e peças esculturais que reinterpretam joias tradicionais de noivas uzbeques. Os projetos de Jenia Kim com Zilola Saidova, Zokhir Kamolov, Said Kamolov e Makhfuza Salimova; Daria Kim com Akmal Muhiddinov, Azamat Nashvanov, Khristofor Kan e Anatoly Ligay; e de Jeong Kwan (chef e monge budista) abordaram a história de um dos maiores grupos diaspóricos do Uzbequistão, os Koryo-saram (ao qual pertence a minha própria família), descendentes de coreanos reassentados à força nos territórios do atual Uzbequistão, vindos do Extremo Oriente Soviético, no final da década de 1930.
Apesar da força geral do contributo artístico e da curadoria refinada, o que mais me impressionou na primeira Bienal de Bukhara foi a facilidade com que o projeto se integrou na cidade. Não só as diversas obras de arte pública transformaram a paisagem urbana, como o evento se encaixou perfeitamente na rotina da cidade. Vi a instalação ao ar livre de Antony Gormley e Temur Jumaev ser utilizada pelas mães como uma ferramenta lúdica para apresentar a arquitetura e o pensamento associativo aos seus filhos; o pátio da madraça Gavkushon a tornar-se um ponto de encontro sob um dossel entrançado por Suchi Reddy e Malika Berdiyarova; e várias instalações que se transformaram em cenários improvisados para ioga ou meditação – nenhuma delas fazia parte da programação pública oficial da bienal.
Observei também o quanto algumas obras pareciam pessoais para os espectadores. Isto tornou-se mais evidente para mim ao assistir a Wet Metal, de Liu Chuang em colaboração com o Bahor Ensemble Uzbekistan. O filme - uma complexa obra de ficção científica, fruto da investigação do artista sobre a agência e coreografia executadas por corpos humanos e máquinas - apresenta imagens da Tashkent modernista, filmagens de arquivo da colheita industrial de algodão e gravações de dança tradicional uzbeque. Ao ouvir três gerações de mulheres – uma avó, uma mãe e uma filha – conversar sobre como as cenas ressoavam com as suas próprias experiências de vida (como muitos no Uzbequistão, falavam russo, um vestígio da política cultural soviética), senti que aquele filme pertencia, de facto, à história das suas famílias.
Fiel às tradições de hospitalidade de Bukhara, a comunidade local mostrou-se pronta para acolher a nova iniciativa cultural e as infraestruturas que a acompanhavam. Ainda assim, formar relações éticas, recíprocas e capazes de trocas sustentáveis é uma responsabilidade que exige diálogo aberto, compromisso e consistência. Em conversas, os artesãos locais envolvidos na bienal manifestaram entusiasmo pelo projeto e pelas possibilidades que futuras edições, ainda não anunciadas, poderão trazer, reconhecendo, no entanto, que os desafios surgem inevitavelmente no início quando se trabalha com práticas desconhecidas. Na cura holística – uma abordagem comummente associada a Avicena – uma única intervenção oferece apenas um alívio temporário, enquanto a verdadeira recuperação requer um processo dedicado e de longo prazo. Da mesma forma, avaliar a bienal como uma receita eficaz para um novo posicionamento cultural de Bukhara só será possível à luz do seu historial futuro.