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Chegar à boca da Noite
DATA
22 Ago 2022
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AUTOR
Mafalda Teixeira
Instituído em 2020 para receber parte da Coleção de Arte Contemporânea do Estado (CACE), o Centro de Arte Contemporânea de Coimbra (CACC) apresenta-nos a sua quarta exposição Chegar à boca da Noite[1] que inicia um novo ciclo proposto pelo curador José Maçãs de Carvalho, com o intuito de criar relações com outras coleções, nomeadamente coleções privadas, quer da cidade de Coimbra como da região estabelecendo uma relação mais íntima com os munícipes.

Instituído em 2020 para receber parte da Coleção de Arte Contemporânea do Estado (CACE), o Centro de Arte Contemporânea de Coimbra (CACC) apresenta-nos a sua quarta exposição Chegar à boca da Noite[1] que inicia um novo ciclo proposto pelo curador José Maçãs de Carvalho, com o intuito de criar relações com outras coleções, nomeadamente coleções privadas, quer da cidade de Coimbra como da região estabelecendo uma relação mais íntima com os munícipes.

Chegar à boca da Noite, reúne um conjunto de obras de dezanove artistas provenientes das Coleções do Estado e do Município de Coimbra, da Coleção de Fotografia Contemporânea do Novo Banco e da Coleção ER, quatro coleções em serviço de um registo curatorial. Pensada em convergência com a temática meia-noite da Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra: Anozero, a exposição desenvolve-se segundo a ideia de crepúsculo e solidão, num intervalo de tempo e de espaço, o mesmo evocado em verso por Ruy Belo em Aquele Grande Rio Eufrates: E ouve-se o silêncio descer pelas vertentes da tarde / chegar à boca da noite e responder, e que o conceito curatorial e narrativo da exposição toma de empréstimo. O conjunto de obras encontradas transporta imagens que nos chegam marcadas por uma luz crepuscular, instalada nesse intervalo, e que constroem lugares intersticiais. Estes lugares podem transportar sensações de transgressão, expectativa, espera ou desassossego porque, em boa verdade, a luz que deles emana é silenciosa e ténue.[2] A ideia de crepúsculo, sensação de sobressalto e desassossego é-nos enunciada nas primeiras obras de Chegar à boca da Noite a partir de paisagens naturalistas e combinações lumínicas, como em Silvae, 2004 de João Queiroz (1957), através da qual entramos num jardim, num bosque, numa floresta mediante um encontro inesperado de descoberta e perceção da natureza numa pintura que subverte a relação entre o pormenor e o todo, evocado pelo detalhe e incidência de luz. Numa combinação entre gestos largos e mais pequenos, leves e pesados, João Queiroz mergulha-nos nas folhagens de uma paisagem, por zonas iluminadas e de luz negrume. A luz como penumbra que descobrimos na paisagem construída de Filipe Romão (1981), cuja aura melancólica acentua a ideia de silêncio, solidão e memória. Desenho a carvão sobre papel, Nº. série, 01, Dos lugares onde nunca estive, 2018 atrai-nos pela profundidade e tonalidade densa do negro trabalhado por camadas, pelos jogos de sombra e luz e ausência de figura humana – à semelhança de João Queiroz – numa procura do artista pela paisagem primitiva. Profundidade e solidão que habitam A chuva cai ao contrário, 2009, desenho-pintura de João Jacinto (1966), representação de um caminho simultaneamente sombrio e iluminado. Observamos as cores escuras e húmidas da chuva, as manchas negras que povoam o caminho que encimado por um céu mais claro, cria uma atmosfera misteriosa que tanto nos desassossega como tranquiliza. Em confronto com a representação da ideia de paisagem presente nas obras já citadas, destacamos a imagem em exibição de Doug Aitken (1968), cuja representação da natureza/paisagem assume a urbanidade e avanços tecnológicos – natureza artificial- com a introdução da luz elétrica na panorâmica noturna. À expressividade e grandiosidade da fotografia, acresce-se a beleza do fundo negro que dominado por pequenos pontos dourados prolonga a sensação de horizonte da imagem que parece não ter limites, e que num interessante contraste dialoga com a obra pictórica de Hugo Canoilas (1977), Diversas Africanas #2, 2007 que na parede em frente nos seduz pela riqueza e variedade cromática das pinceladas sobrepostas e de gestos rápidos que tanto imprimem uma nota de cor como sugerem uma certa intranquilidade.

A atmosfera crepuscular que se anuncia e nos acompanha no momento inicial do nosso percurso em Chegar à boca da Noite acentua-se assim como a sensação de angústia e de tragédia que nos são transmitidas em obras que, no segundo piso da exposição, convocam a noite e a morte. A este propósito destaquemos Untitled (Black Mirror), 2005, de Aino Kannisto (1973), obra em que a própria fotógrafa – que observa o seu reflexo no espelho – é a protagonista, revelando-nos uma imagem bastante fúnebre de si mesma[3]. Há uma atmosfera melancólica e inquietante na imagem, capturada no instante fotográfico em que o espaço e o tempo param, confrontando-se o espectador com um momento de revelação íntima e de contemplação interior. Ao desassossego que a cena evoca, acresce-se a atenção da artista aos detalhes da composição: a queda de luz; a cor negra; a disposição do cenário; o vestuário da mulher; o seu olhar; gestos e posicionamento, reforçam o ambiente de suspense da imagem. No mesmo espaço, outra figura feminina desperta a nossa atenção: a da mulher cujo corpo e vestido flutuam dentro de água, em Immerse de Pedro Pascoinho (1972). O olhar inerte que parece fixar-nos, a boca entreaberta e a cara envolta até ao queixo no azul profundo, quase negro, da água que a cerca, acentuam a intensidade e o drama da situação emocional representada. A luz crepuscular que incide sobre o seu corpo envolto no obscurantismo reforçam a sensação de melancolia e abandono da cena retratada, que suspensa no tempo é uma referência do artista ao mito de Ofélia[4]. A presença da noite, do abandono e da solidão que reencontramos na presença espectral de Duchamp, 2015, de Carlos Correia (1975-2018) fantasma pensativo do pintor que joga xadrez consigo próprio e sobre o qual a luz incide revelando-o como aparição. Ladeando o jogador a convocação da morte de Paulo Brighenti (1968) cujas caveiras, alinhadas em prateleiras, relembram-nos a inevitabilidade da mesma: crânios como lembranças de outros tempos, de outras civilizações, como o monumento megalítico de Pires Vieira (1950), Alinhamentos, 1988, obra pictórica minimal através da qual o artista evoca morte e memória, despertando-nos a configuração geométrica dos alinhamentos tumulares sobre um campo verde, a depuração e simplicidade das formas, sensações de repouso, transcendência e espiritualidade.

No último piso da exposição somos envolvidos pela ambiência crepuscular das duas fotografias da série Dream House, 2002, de Gregory Crewdson (1962). Dispostas lado a lado, observamos quais voyeurs, o lado íntimo e privado da vida doméstica de um homem e de uma mulher. Cada um em seu quarto, sentados na beira das respetivas camas, atraem-nos e desassossegam-nos pelo lado sombrio, estado de sofrimento e solidão que evocam – se bem que acompanhados – que a iluminação e qualidade cinematográfica da encenação ajudam a reforçar. A penumbra que do interior dos quartos estende-se ao ar livre, ao jardim que a fotógrafa Sarah Jones (1959) nos oferece em The Park (II), 2002. Rigorosamente enquadrada, ricamente colorida e tonalmente sensível, observamos as folhas outonais caídas no chão, o verde escuro da vegetação que serve de pano de fundo à imagem e a árvore que com os seus longos troncos fornecem à composição um ambiente sombrio. Como uma cena pictórica suspensa no tempo, Sarah Jones funde na beleza visual da inquietante paisagem, a figura solitária da protagonista: a mulher que ao centro da composição, deitada no tronco da árvore como que levitando, parece imersa no seu mundo privado e num estado de ambivalência. Ideia de suspensão que reencontramos nas obras em exibição dos artistas portugueses Rui Chafes (1956) e Ana Rito (1979). Como sombra que flutua no espaço, de um negro intenso, deixamo-nos seduzir por PPP,2005 de Ana Rito, escultura cuja leveza e intensidade nos impelem ao encontro da figura eclesiástica que se nos impõe pela solenidade da mitra e das vestes cujos pregueados conferem dinamismo e movimento como se viesse ao nosso encontro. A serenidade no seu rosto que fixa Áspero, Nobre Suicidário III, 1996, escultura de Rui Chafes (1956), um corpo dentro de um corpo que constrange e envolve, imprime-nos um desconforto aprazível e ideia de ferida que de certo modo nos acompanham ao longo de Chegar à boca da Noite, exposição de silêncios que constroem narrativas poderosas.

Chegar à boca da Noite, está patente no Centro de Arte Contemporânea de Coimbra (CACC) até 28 de agosto.

 

 

[1] Inaugurada a 20 de abril de 2022, Chegar à boca da Noite estará patente no CACC até ao dia 28 agosto.

[2] CARVALHO, José Maçãs de – Folha de Sala de Chegar à boca da Noite.

[3] Citação do curador José Maças de Carvalho durante a reportagem à ESECTV a propósito da exposição.

[4] Idem.

BIOGRAFIA
Mafalda Teixeira mestre em História de Arte, Património e Cultura Visual pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, estagiou e trabalhou no departamento de Exposições Temporárias do Museu d'Art Contemporani de Barcelona. Durante o mestrado realiza um estágio curricular na área de produção da Galeria Municipal do Porto. Atualmente dedica-se à investigação no âmbito da História da Arte Moderna e Contemporânea, e à publicação de artigos científicos.
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