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Joga o Jogo: Largada... no Fórum Arte Braga
DATA
22 Dez 2025
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AUTOR
Mafalda Teixeira
Depois da apresentação de PARTIDA... no MU.SA – Museu das Artes de Sintra, primeiro momento do ciclo Joga o Jogo,com curadoria de Hugo Dinis e promovido pela Rede Portuguesa de Arte Contemporânea, apresenta-se agora no Fórum Arte Braga LARGADA... mostra que reúne obras da Coleção da Caixa Geral de Depósitos, do Museu dos Biscainhos e Museu D. Diogo de Sousa (localizados em Braga), bem como a participação do artista convidado Miguel Soares (1970).
É na antecâmara do espaço expositivo do Fórum Arte Braga que se estabelece a introdução preparatória ao jogo com as obras de Luisa Correia Pereira (1945) e Dayana Lucas (1987). O entendimento do jogo que a forma pictórica encerra, como (re)descoberta de uma infância que se (re)inventa, introduz-nos na exposição com as cinco peças de 1973 de Luisa Correia Pereira. Sugerindo uma leitura dinâmica e coreográfica, os linóleos - lúdicos na sua conceção e montagem - cujos títulos variam na cor foram concebidos a partir de 3 elementos a branco sobre fundos de cor lisa – azul, vermelho, verde, amarelo e preto – como que evocando tapetes mágicos com franjas.
A manifestação de estados transformadores e de reinvenção prossegue sob a forma de metáfora e de enigma na obra escultórica 7 Chaves (2020, de Dayana Lucas. Numa alusão ao ritual e possibilidades de mudança, a peça, de dimensão escultórica e instalativa, revela-nos uma ação gestual e física por parte da artista. Visualmente rica, observamos a aparente simplicidade do desenho de linhas negra, elegantes, das curvas produzidas em ferro e o simbolismo da chave enquanto signo associado ao duplo papel de abertura e fechamento. Símbolos de mistérios a penetrar, de enigmas a resolver e de etapas que conduzem à iluminação e à descoberta, em 2013 Dayana lançou ao rio, antes de o cruzar, as suas próprias chaves como oferenda, num processo de encerramento de um ciclo pessoal. Por sua vez, em 2020, produziu com um ferreiro local na ilha dos seus antepassados, num gesto de reconhecimento e cumplicidade, a obra que agora nos presenteia, qual jogo transformador entre memória, imaginação e recomeços.
Do pendor lúdico e ritualístico das obras em exibição na antecâmara, seguimos para a primeira sala da exposição onde os dados do jogo são – metafórica e literalmente – lançados sobre a mesa. Num encontro bem conseguido entre património histórico e propostas curatoriais contemporâneas, deparamo-nos com peças pertencentes às coleções do Museu D. Diogo de Sousa e Museu dos Biscainhos, num diálogo interessante entre bens patrimoniais e obras contemporâneas. A este propósito destacamos a presença de peças de jogo da época romana provenientes de escavações arqueológicas: uma fichade jogo em cerâmica (I EC -I IEC) e um dado em madeira orgânica e osso (III EC - IV EC) que evidenciam a importância dos jogos de tabuleiro na vivência quotidiana da sociedade romana e na formação cultural desde a Antiguidade. Próxima a Mesa de Jogo (s.d.) proveniente do Museu dos Biscainhos, em madeira folheada a “Goncalves Alves” e forro de pano verde, testemunha a valorização da confraternização social através da prática de jogos como o gamão, as cartas, o xadrez ou as damas.
Num diálogo humorístico e irónico observamos, não muito distante, a cadeira Thonnet a que foram cortadas as pernas que assentam diretamente no chão e cujo tampo sustenta um enorme paralelepípedo de gesso, como se de uma mesa gigante se tratasse. Há nesta escultura de Croft (1957), Sem título (1995) um jogo de ironias, metáforas e estranhezas, como se a cadeira se afundasse no próprio chão pelo peso excessivo do monólito, num confronto constante de desequilíbrios, escalas e gravidade.
No mesmo núcleo das obras mencionadas, destacamos os dois óleos sobre tela de José Loureiro (1961), Palavras Cruzadas VII e IX, (1994) cujos tons de castanho, ocre, cinzento e o arrastamento da tinta se estendem pelo motivo da grelha, tão caro ao artista, numa expansão do jogo de casas cheias e vazias próprias das palavras cruzadas. A superfície da grelha das pinturas de Croft como que se estende à obra Sem título (1989) de Júlia Ventura (1952) cuja multiplicidade de imagens - figurativas e abstratas - formam um painel. Neste trabalho, apropriado de obras modernistas, a abertura à cor e a intervenção em cibachrome fazem sobrepor ao elemento estrutural da autoimagem fotográfica da artista, um conjunto de especulações cromáticas garridas e simbólicas. Performando para a câmara numa postura algo kitsch, sedutora e naïf, a artista assume gestos femininos ao segurar uma rosa, símbolo da virtude feminina e instrumento de reivindicação de um espaço de desejo e prazer carnal. Imagens devolvidas ao espetador, como espelhos, que abordam questões relacionadas com a representação da sensualidade e/ou sexualidade feminina.
Reflexões sobre o papel de mulher, o seu estatuto social e questões de género, estão também presentes em Woman’s work is never done (2002) de Ana Vidigal (1960). De cariz irónico, a série apresenta-nos materiais de uso doméstico reaproveitados pela artista - lã, flores artificiais, etiquetas, cartão, luva de plástico - combinados com frases que funcionam como desabafos, apresentando-se em todas elas a casa enquanto elemento central, num jogo dicotómico para o observador entre público e privado. O espectador que mais uma vez é convocado para um novo jogo, qual sopa de letras, nos dois acrílicos sobre tela de João Vieira (1934-2009). Datados de 1969, as obras revelam a valorização do gesto por parte do artista que, através da utilização de trinchas, marca as próprias letras que vão ganhando espessura e presença enquanto corpo. Em ambas as obras a letra é signo e o elemento plástico que organiza a composição, adotando rotações e inversões, possibilitando um amplo leque combinatório de leituras, apreendendo a letra e a palavra como algo que reage connosco.
Ainda na primeira sala dedicada à exposição, destaque para as quatro obras da autoria do artista convidado Miguel Soares, uma das mais importantes vozes da arte digital da sua geração. A impressão digital Fighter (2003), composta pela justaposição de milhares de pequenas imagens e logótipos provenientes da internet, retrata na sua totalidade o lançamento de uma bomba por um caça a jato; num outro espaço da sala observamos, em dois televisores colocados sobre plintos negros, os trabalhos videográficos de animação Space Junk Beta I.0 (2001) e H2O (2004), nos quais explora temas do mundo contemporâneo: o aumento da poluição nos céus e mares. O interesse do artista por ficção-científica, ambientes artificiais e tecnologia pós-moderna, adquirem nos dias de hoje novos contornos na sua prática artística conforme testemunha a sua obra mais recente Arquivo Braga (2025), trabalho de animação AI baseado em imagens de arquivo de Braga.
Da luminosidade da primeira sala de exposições, seguimos para o segundo momento expositivo, onde nos deparamos a um canto da sala com Jotas (c.1985-2005) de Ana Jotta (1946). Qual brincadeira com o seu próprio sobrenome, a letra j ou jota, a artista reúne e molda um conjunto heterogéneo de esculturas cuja forma curva se aproxima dessa letra. Pousados no chão, encostados ou fixos à parede observamos o conjunto de esculturas de tamanhos e materialidade diversas de quem adotou esse signo como marca iconográfica e jogo identitário. Jogo identitário que parece continuar na obra de Francisco Tropa (1968) A Assembleia de Euclides (cabeça), 2004, crânio de bronze que se apresenta numa caixa de areia compactada, na qual a cabeça terá sido moldada, mas que não sabemos a quem de facto pertence.
A mortalidade e a introspeção relacionam as obras neste espaço, conforme testemunham as personagens trágico-cómicas de Suzanne Themlitz (1968) na sua Galeria dos solitários, carrancudos e ensimesmados (1997-2001), composta por pequenos seres zangados e espantados cujas expressões parecem afirmar as suas desconfianças em relação ao outro e ao mundo, à semelhança do conjunto de autorretratos a grafite sobre papel A última morada (1994) de Gaëtan (1944-2019). Num exercício irónico de reconhecimento a que ambas as obras nos conduzem, terminamos a nossa visita a LARGADA... à qual se seguirá em 2026, no Centro de Artes de Águeda, FUGIDA! último momento do ciclo Joga o Jogo.
A exposição pode ser visitada até dia 4 de janeiro no Fórum Arte Braga.

BIOGRAFIA
Mafalda Teixeira mestre em História de Arte, Património e Cultura Visual pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, estagiou e trabalhou no departamento de Exposições Temporárias do Museu d'Art Contemporani de Barcelona. Durante o mestrado realiza um estágio curricular na área de produção da Galeria Municipal do Porto. Atualmente dedica-se à investigação no âmbito da História da Arte Moderna e Contemporânea, e à publicação de artigos científicos.
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