A importância e o contributo da exposição de Paris para a visibilidade do acervo e o interesse crescente da comunidade artística e museológica pela Arte Bruta justificam a segunda apresentação no Centro de Arte Oliva, com o objetivo de fomentar redes de cooperação, dar acesso continuado às obras e integrar um circuito cultural europeu ativo e reconhecido.
Em depósito desde 2014 no Centro de Arte Oliva, num acervo de 1700 obras, reunidas ao longo de 40 anos por Richard Treger e António Saint Silvestre, a Coleção Treger Saint Silvestre apresenta trabalhos de autores que atuam à margem dos circuitos artísticos convencionais, livres dos cânones e influências formativas. Constituída a partir da noção de Arte Bruta, cunhada por Jean Dubuffet, em 1946, para definir um movimento de contracultura produzido por pessoas sem formação artística e cuja alteridade social e mental os extraía das correntes dominantes da cultura, as obras presentes na Coleção Treger Saint Silvestre promovem uma reflexão sobre o conceito de arte, a descoberta por manifestações criativas livres e compulsivas, bem como um alargamento dos nossos horizontes artísticos.
Recorte dessa coleção, Espírito Singular revela-nos criadores que, sendo na sua maioria autodidatas, impuseram as suas próprias normas à arte, tanto na escolha dos materiais e técnicas utilizadas, quanto nos temas representados. A seleção dos trabalhos em exibição abrange desde artistas associados aos momentos fundacionais da Arte Bruta, a autores provenientes de contextos mais recentes e diversos, ampliando-se possibilidades de leitura deste campo de criação. Mantendo a curadoria de Martine Lusardy, diretora da Halle Saint Pierre, a exposição portuguesa coloca em evidência, para além da pintura e escultura, a influência da Arte Bruta em práticas artísticas contemporâneas como a fotografia.
Entre desenhos, pinturas, esculturas, acumulação de objetos, colagens e fotografias, mergulhamos numa viagem visual e emocional por universos criativos de cem autores cujas obras exploram e revelam mundos interiores, paixões, angústias, sonhos e revoltas.
Se alguns dos trabalhos em exibição despertam a atenção pelo caracter naïf, colorido e vibrante, caso das enormes figuras masculinas musculadas - os bodybuilders - de Misleidys Pedroso (1985) pintadas em cartão, recortadas e coladas nas bordas com pequenos pedaços de fita-cola castanha, e das peças cerâmicas surrealistas da portuguesa Mónica Machado (1966) que, inspiradas na imagética da cultura popular, parecem flutuar sobre os seus suportes numa profusão de formas e figuras coloridas, outros provocam uma sensação de desconforto e de inquietude no visitante, de que é exemplo o universo pictórico de Dado (1933-2010) ao retratar a violência humana.
Num outro núcleo expositivo, a fotografia surge enquanto expressão artística dentro do universo da Arte Bruta nos retratos e autorretratos performativos de Machcinski (1942-2022) que se transfigura em personagens fictícias ou apropriadas e de Bascoulard (1913-1978) nos quais questiona distinções e questões de género. Ainda no campo da fotografia destaque para as fotos encenadas de Eugene von Bruenchenhein (1910-1983) à sua mulher, num registo que vai do ingénuo ao erótico, e para as imagens poderosas e macabras do cubano Jorge Alberto Cadi (1963) sobre as quais se incluem cruzes, cabeças cortadas e olhos cosidos à mão, como forma de revelar sentidos ocultos em cenas familiares.
Destaque ainda para a presença de desenhos do artista português de Arte Bruta mais reconhecido em Portugal e no estrangeiro, Jaime Fernandes (1899-1969), cujos gestos minuciosos e repetitivos dão forma a figuras humanas densas que, de olhares intensos, bocas entreabertas e braços caídos ou levantados, ocupam na totalidade as reduzidas dimensões das folhas de papel.
Impondo-se pela representatividade do que é a diversidade da Arte Bruta e as suas múltiplas expressões, Espírito Singular dá-nos a conhecer obras que refletem um envolvimento profundo e pessoal dos seus autores com a expressão artística, fruto das suas trajetórias de vida singulares, onde o convencional dá lugar ao autêntico e ao original.
A exposição pode ser visitada até dia 23 de novembro de 2025.