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'Xerazade' e 'Baile dos Bugalhos' no Centro de Arte Moderna Gulbenkian
DATA
18 Dez 2025
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AUTOR
Maria Brás Ferreira
“Centro de Arte Moderna expõe, em Xerazade, sob a curadoria de Leonor Nazaré, a colecção do museu, numa proposta de actualização permanente de obras, revelando o conceito de colecção como conjunto movido por um desejo de continuação.”
No Espaço Engawa, Francisco Trêpa apresenta o seu Baile dos Bugalhos, comprometido com a atenção de olhar para fora e de revelar a metamorfose, de a explicitar como plataforma artística e acto político de pensar o familiar e o estrangeiro. A ideia é a de aproveitar as potencialidades metafóricas que a natureza nos oferece, enquanto plano de cruzamentos vários, de metamorfoses responsáveis pela indistinção, mais ou menos prolongada, mais ou menos provisória, do dentro e do fora, do uno e do diverso, da semelhança e do diferenciado. Como descrito na folha de apresentação da exposição, este baile resulta da “observação dos bugalhos no Jardim do CAM, onde o artista teve o primeiro contacto com estas reações biológicas resultantes da interação entre plantas (como os carvalhos) e agentes externos (como as vespas). O efeito manifesta-se como um inchaço no exterior da planta, que fornece nutrição e abrigo aos insetos que o induzem”. Assim, o corpo parasitário provoca uma reacção no corpo hospedeiro, de forma a que o primeiro seja acomodado pelo segundo que, com efeito, aceita e compreende — exemplo de “empatia biológica — a presença do corpo estranho.
Na sala da exposição, separados por um vidro do jardim da Gulbenkian, é inevitável não prosseguir com a analogia e pensar nos milhares de refugiados que se deslocam de país para país, promovendo a reconfiguração da sua própria identidade e a daqueles que habitam o lugar de chegada. Impossível igualmente não reconsiderar a relação que o humano trava com o não-humano, estando aqui incluídos reino animal, vegetal e mineral. A noção de deslocação, viagem, transitoriedade, torna-se, pois, mais justa para o estabelecimento de uma noção de identidade, a qual, forçosamente, se olharmos para o mundo que habitamos, terá que passar pela exposição das fronteiras como construções provisórias, fictícias e, como toda a ficção que se torna normativa, vulneráveis aos vícios do poder detido por uma minoria condutora da maioria. Não que a natureza deva ditar o comportamento humano. Tal seria incorrer numa mitificação do natural, com consequências perigosas, nomeadamente a da estratégia protectora de ideologias totalitárias de legitimação de uns e exclusão de outros. Contudo, curioso será observar a natureza que nos precede para entender tensões que se geram e que podem ser resolvidas com base na assunção da noção de incompletude como condição existencial de todo o ser vivo, contextualizado num ecossistema do qual depende. É, aliás, uma tal incompletude que permite o desdobramento fictício do humano, e, de resto, a leitura metafórica, por analogias, da natureza que nos rodeia.
De certa forma, o próprio espaço da exposição, situado junto ao jardim, no centro da cidade de Lisboa, mimetiza a localização intermedial do humano e do artista, que consciencializa uma série de contextos biológicos paralelos ao seu, cujo testemunho, de forma consciente ou não, desvirtua qualquer suposto desígnio último e específico do humano. Os materiais das peças são vários, as formas inusitadas, fazendo de toda a tentativa de localização fisionómica vã. De cantos discretos surgem figuras, ao jeito de câmaras de vigilância, como que nos lembrando que há sempre outro olhar, ao mesmo tempo que nós próprios nos tornamos — ou somos permanentemente — objecto visado, vigiado, ora parasita, ora hospedeiro.
***
O Centro de Arte Moderna expõe, em Xerazade, sob a curadoria de Leonor Nazaré, a colecção do museu, numa proposta de actualização permanente de obras, revelando o conceito de colecção como conjunto movido por um desejo de continuação. Talvez um tal apelo de continuação seja lançado, e se torne manifesto, em jeito de compensação de uma falta de clareza do princípio curatorial da exposição. Eis uma dúvida que os vários momentos da exposição não esclarecem.
Se se trata de uma proposta de continuação, o mesmo não se poderá dizer de continuidade, visto que a concepção artística e o critério expositivo que subjaz Xerazade são anunciados, sim, como aquele de combinar pela diversidade, jogar por um gesto de estranhamento a elaborar — e a continuar — pelo espectador.
A exposição está dividida por 14 secções temáticas ou, melhor seria dizer, 14 modos de contar, ao mesmo tempo que é sugerida a defesa de várias regras narrativas ou de vários elementos compositivos do acto da narração que passa, igualmente, pela atenção da escuta e do olhar sobre o que nos rodeia.
Nada é, todavia, garantido. Nenhuma gramática é ditada. Deve dizer-se, aliás, que parece forçada a organização de cada momento expositivo, parecendo tudo ficar subsumido a uma leitura algo selvagem deste e daquele tópico, designativos das várias partes da exposição, a saber: Muito me Contas, Um Livro (em) Aberto, Suspense, Memória Prodigiosa, O Combate, O Brilho do Mundo, Labor Intenso, Mil e Uma Coisas, A Vida de Cada Um, Mil e uma Madrugadas, O Sono dos Injustos, Astúcia e Sedução, Fontes de Inspiração, Estar Viva Amanhã. A ligação entre uma secção e outra é tarefa delegada ao visitante, que se deve predispor não exactamente a ligar narrativamente uma e outra peça, mas a testemunhar tensões, sejam elas positivas ou negativas. De facto, e orientando-nos pelo título que remete para a mítica narradora persa, de As Mil e Uma Noites, é sobre o terreno da suspensão entre uma e outra noite, que esta exposição, escandida em 14 momentos, 14 parágrafos ou 14 intervalos — 14 sonhos ou 14 vigílias — se sustenta.
A imensidão das mil e uma noites, durante as quais uma história, contendo outras, é narrada, é mimetizada pelo jogo interminável de expor, promovendo uma constelação de pensamentos, emoções e ideias, de extensão necessariamente incalculável. Também para rimar com esse incalculável que uma narração inscreve como um tempo à parte, desvinculado da regra do mundo e de qualquer agenda individual e redutível a estes e aqueles encontros, as idades e proveniências dos artistas variam, sem se imporem critérios bacocos como a idade ou a linhagem artística dos mesmos. Assim, temos pintura, fotografia, desenho, ilustração, escultura, vídeo e gravação de som. Ao gesto feliz de contornar categorias vazias de sentido, indicativas de um modo tradicional de expor, apõe-se, malfadadamente, a impressão de certa arbitrariedade, como se na escolha de gerar uma exposição dinâmica subjazesse, afinal, o conceito de híbrido, mais como desculpa do que como razão.
Não há prescrição possível para o acto de contar, assim como uma colecção que se queira fiel a si mesma não pode ser motivada senão pelo gosto do coleccionador. As razões para a existência de uma colecção — e importa fazer a distinção entre uma colecção pública e uma privada — poderão ser de ordem diversa. Todavia, o mistério de juntar subjaz invariavelmente a uma combinação específica, tal como o resultado de colocar duas obras lado a lado produz no espectador efeitos nem antecipáveis, nem tampouco absolutamente compreensíveis para o próprio que os testemunha.
Ansiamos, pois, o justo mistério dessa contadora de histórias e de moradas abertas. Aguardamos as futuras combinações de Xerazade.
Baile do Bugalhos, de Francisco Trêpa, poderá ser visitado até dia 12 de janeiro de 2026. Por sua vez, a exposição Xerazade está patente até dia 20 de setembro de 2027.

A autora não escreve ao abrigo do AO90.
BIOGRAFIA
Mestre em Estudos Portugueses, pela Universidade Nova de Lisboa, com uma tese sobre Nuno Bragança. Encontra-se a escrever uma tese de doutoramento sobre Agustina Bessa-Luís e Manoel de Oliveira e a melancolia. Bolseira FCT, participou em antologias, tendo publicações, de poesia e ensaio, em revistas nacionais e internacionais. Publicou dois livros de poesia: “E o Coração de Soslaio a Todo o Custo” (2025) e “Penhasco” (2025). É co-editora da revista Lote. Faz crítica literária no jornal Observador.
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