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O Museu das Microagressões, de Pedro Gomes
DATA
18 Nov 2025
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AUTOR
Laurinda Branquinho
Uma microagressão é uma atitude subtil, um comentário, gesto ou ação, que transmite desprezo, preconceito ou desvalorização de alguém devido à sua identidade, género, etnia ou classe. Estas microagressões não se limitam às interações interpessoais: elas atravessam instituições, discursos e práticas, moldando o que é legitimamente valorizado e marginalizando o que desafia a norma. No campo cultural este conceito manifesta-se na esfera do gosto, nas hierarquias que distinguem o que é considerado legítimo ou digno de entrar no circuito artístico e o que é excluído por ser visto como demasiado popular, decorativo ou de “mau gosto”.
O modernismo, dominante ao longo do século XX, consolidou esse sistema de valores, privilegiando a simplicidade e a funcionalidade e rejeitando tudo o que evocasse excesso, emoção ou artifício. As formas de expressão mais sensoriais ou quotidianas foram assim relegadas a um estatuto menor, como se não pertencessem plenamente ao domínio da arte. Esse afastamento refletiu-se na desvalorização das artes decorativas, associadas ao doméstico e ao feminino, vistas mais como ofício do que como criação artística.
É precisamente nesse território marginal, feito de padrões, texturas e materialidade, que Pedro Gomes encontra o ponto de partida para questionar as subtis exclusões simbólicas e estéticas que acontecem dentro do mundo da arte. Os trabalhos que apresenta na exposição O Museu das Microagressões, patente no novo espaço da Kindred Spirit, materializam essa crítica através de uma instalação construída a partir de materiais em segunda mão - papéis de parede, gravadas, toalhas de mesa, cortinados ou tecidos de sofás - alguns deles recuperados da sua própria infância. Este é um gesto de recolha profundamente poético, pois recupera o corpo de significados e de memórias que cada objeto carrega. Essa dimensão poética e funcional da arte decorativa encontra eco nas palavras do artista William Morris: “Dar prazer às pessoas na utilização das coisas que forçosamente têm que utilizar é um grande serviço da decoração; dar prazer às pessoas naquilo que forçosamente têm que fazer é a sua outra função... sem estas artes, o nosso descanso seria vazio e desinteressante, e o nosso trabalho apenas um fardo, mero desgaste do corpo e da mente.”1, reforçando a ideia de que a decoração e os objetos do quotidiano possuem valor estético, social e politico que merece ser reconhecido.
Com estes elementos, Pedro Gomes desmonta a ideia de neutralidade expositiva associada ao white cube, substituindo o branco imaculado da galeria por um ambiente saturado de padrões e texturas. O artista utiliza os dispositivos de exposição comuns, como os painéis e placards típicos de escolas, juntas de freguesia ou instituições públicas, forrando-os com restos de tecidos e materiais reaproveitados. Sobre essas superfícies, expõe telas marcadas por riscas verticais de papéis de parede e tecidos que colecionou ao longo do tempo. O que delineia as riscas é uma pasta de papel reciclado, que impõe uma contenção visual que contrasta com a exuberância dos padrões.
Muitos dos padrões que vemos são floridos, reconhecê-mo-los das toalhas de mesa e sofás que vimos em casa dos nossos avós, ou das paredes da casa de uma tia onde costumávamos passar o Natal. São motivos que remetem diretamente para a cultura dos anos 70 e para o universo do bad taste design — um estilo marcado pela exuberância visual, pela mistura de padrões e pela recusa deliberada da sobriedade modernista. Esta estética, que privilegiava o excesso e o artifício, surgiu como reação ao funcionalismo e à austeridade, afirmando uma nova sensibilidade ligada à experimentação formal, ao prazer visual e à cultura popular.
Dispostos quase em labirinto, os painéis transformam o espaço expositivo num museu alternativo, onde o visitante é envolvido por aquilo que a história de arte classificou como “arte menor”. Ao reabilitar o que foi descartado, Pedro Gomes propõe uma reflexão sobre as microagressões estéticas que continuam a redefinir e a restringir o que é (ou não) reconhecido como arte.
Apropriando-se dessa linguagem marginalizada, o artista questiona os critérios de valor que estruturam o gosto, reinscrevendo no espaço da galeria os elementos que o modernismo excluiu. O imaginário doméstico que convoca não é só um resquício nostálgico; torna-se também um campo de resistência política e afetiva, onde o excesso e o artifício recuperam o seu poder subversivo.
A exposição está patente no novo espaço da Kindred Spirit, em Carnide, até 27 de novembro de 2025.

1 William Morris, Artes Menores e outros ensaios, Pág. 25. Lisboa: Antígona.
BIOGRAFIA
Laurinda Branquinho (Portimão, 1996) é licenciada em Arte Multimédia - Audiovisuais pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Estagiou na Videoteca do Arquivo Municipal de Lisboa onde colaborou com o projeto TRAÇA na digitalização de filmes de família em formato de película. Recentemente terminou a Pós-graduação em Curadoria de Arte na NOVA/FCSH onde fez parte do coletivo de curadores responsáveis pela exposição "Na margem da paisagem vem o mundo" e começou a colaborar com a revista Umbigo.
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