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Bicho de Seis Cabeças, de Abel Mota
DATA
07 Out 2025
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AUTOR
Débora Valeixo Rana
O que descobriremos de comum entre um delírio gráfico, no qual o corpo humano se converte em recipiente e gerador de quimeras, um gato que prende entre os dentes um naco de carne fálico, um cavalo que sopra uma trombeta e um homem nu que, com as próprias mãos, sustém e ergue os seios? A estranha vizinhança entre o grotesco e o cómico, entre a metamorfose e o espetáculo.
Bicho de seis cabeças, uma sequência de 30 desenhos e pinturas de pequena e grande escala, ressoam, em diferentes intensidades, a condição do cómico que Bergson, em 1900, fixou: o facto de o ser humano não apenas saber rir, mas saber também oferecer-se como espetáculo que faz rir. O riso que nelas vibra não é apenas reação individual, implica um eco coletivo, uma cumplicidade implícita entre observadores, reais ou imaginários, que reconhecem, nas formas burlescas, uma teatralização de si próprios. Entre burros e lobos, entre figuras humanas cujo rosto não vemos, escondidas por detrás de uma máscara demasiado familiar, convergem as histórias da nossa infância: animais que se apresentam como humanos, humanos que se escondem na pele de animais. Não há uma narrativa que comece e que, ao terminar, dê lugar a outra. Elas cruzam-se e interrompem-se, são uma coisa ao longe, outra ao perto. E se uns se escondem, outros revelam-se, segurando a capa do animal onde antes se ocultavam. Neste jogo de máscaras e encenações emergem devires-animais, que convocam tanto o imaginário das fábulas quanto o dos bestiários medievais, em que animalidade serve de espelho deformado da condição humana. Uma condição que oscila entre a ordem e a desordem, entre a promessa de sentido e a invasão do absurdo.
De alguma forma, é como se a galeria, logo na entrada, ocupasse o lugar de um livro infantil. Nos livros infantis, a estranheza das figuras é divertida e inocente. Em muitos, vemos a presença de abas, para que a criança possa jogar ao “onde está”, permitindo-lhe, através do toque, descobrir a figura escondida. Os desenhos de Abel Mota ativam um olhar semelhante. A colagem, presente em muitos deles e ainda que imóvel, funciona como essas abas: ora destaca, ora esconde, ora acrescenta, ora anula. A própria disposição dos desenhos sobre mesas reforça essa sensação: em vez de pendurados, são-nos apresentados como páginas abertas, à altura do corpo que se inclina, convidando o espectador a procurar relações e a completar narrativas fragmentadas. Mas neste caso não há inocência nem mera diversão, há uma fábula encenada entre o esotérico e o profano.
À medida que avançamos, vemos o preto e o branco gradualmente substituídos pela cor. O olhar, ao erguer-se, encontra um corpo repartido: mãos, pernas, pés e cabeça tornam-se objeto de escolha. Mais à frente, no corredor, a cor rompe a rigidez do traço e devolve às formas uma mobilidade latente.
Contudo, é apenas na ala final da galeria que somos verdadeiramente surpreendidos: ali, em estado de clímax, impõe-se diante de nós uma obra que, oculta ao olhar periférico, se destaca não apenas pelo conteúdo, mas também pela sua escala. Três Tristes Tigres suspende o sorriso, tal como a verbalização destas três palavras interrompe a fluidez da fala. O título, retirado de uma lengalenga infantil conhecida por todos, reforça a ambivalência que experienciamos: o jogo da repetição inocente, próprio da infância, confronta-se com a grelha que o compõe, que introduz a sensação de clausura e, simultaneamente, de cena observada à distância. Neste palco cromático, a pele de tigre, força predatória, choca com a vulnerabilidade da figura humana. A força do tigre surge como um poder desejado, mas nunca cumprido, pois devolve sempre o sujeito à sua fragilidade.
Ao regressar à porta pela qual entrámos, encontramos a obra que encerra a exposição: Auto-retrato com máscara. Se antes a fragilidade se insinuava, aqui é anulada. O corpo surge frontal, quase desafiador. A máscara, interrompendo a sua função, revela e reforça uma presença excêntrica e desconcertante. É nesse momento, já de saída, que a questão se impõe: a escolher, que parte de nós escolheríamos? Lembremo-nos, no entanto, que não se trata de uma verdadeira questão. Pois não podemos escolher. Os dois lados pertencem-nos e contaminam-se mutuamente. Somos frágeis e vulneráveis e somos grotescos e profanos ao mesmo tempo. Talvez seja precisamente nessa tentativa de controlo que vive o risível que nos compõe. Resta-nos, tal como Abel Mota o faz, explorar e aguçar a nossa curiosidade sobre o modo como estas duas forças se entrelaçam.
Com curadoria de Frederico Vicente, Bicho de seis cabeças, de Abel Mota, está patente na Galeria Plato, no Porto, até 17 de outubro.









BIOGRAFIA
Débora Valeixo Rana (n. 1990, Lisboa, Portugal) é professora de Filosofia e reside no Porto. Licenciou-se em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (2011) e é mestre em Ensino de Filosofia no Ensino Secundário (2019). O seu percurso académico e profissional reflete um profundo interesse pela interseção entre Arte e Filosofia, um diálogo que a levou, em 2022, a ingressar no mestrado em Estudos Artísticos e Crítica de Arte na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto.
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