Bicho de seis cabeças, uma sequência de 30 desenhos e pinturas de pequena e grande escala, ressoam, em diferentes intensidades, a condição do cómico que Bergson, em 1900, fixou: o facto de o ser humano não apenas saber rir, mas saber também oferecer-se como espetáculo que faz rir. O riso que nelas vibra não é apenas reação individual, implica um eco coletivo, uma cumplicidade implícita entre observadores, reais ou imaginários, que reconhecem, nas formas burlescas, uma teatralização de si próprios. Entre burros e lobos, entre figuras humanas cujo rosto não vemos, escondidas por detrás de uma máscara demasiado familiar, convergem as histórias da nossa infância: animais que se apresentam como humanos, humanos que se escondem na pele de animais. Não há uma narrativa que comece e que, ao terminar, dê lugar a outra. Elas cruzam-se e interrompem-se, são uma coisa ao longe, outra ao perto. E se uns se escondem, outros revelam-se, segurando a capa do animal onde antes se ocultavam. Neste jogo de máscaras e encenações emergem devires-animais, que convocam tanto o imaginário das fábulas quanto o dos bestiários medievais, em que animalidade serve de espelho deformado da condição humana. Uma condição que oscila entre a ordem e a desordem, entre a promessa de sentido e a invasão do absurdo.
De alguma forma, é como se a galeria, logo na entrada, ocupasse o lugar de um livro infantil. Nos livros infantis, a estranheza das figuras é divertida e inocente. Em muitos, vemos a presença de abas, para que a criança possa jogar ao “onde está”, permitindo-lhe, através do toque, descobrir a figura escondida. Os desenhos de Abel Mota ativam um olhar semelhante. A colagem, presente em muitos deles e ainda que imóvel, funciona como essas abas: ora destaca, ora esconde, ora acrescenta, ora anula. A própria disposição dos desenhos sobre mesas reforça essa sensação: em vez de pendurados, são-nos apresentados como páginas abertas, à altura do corpo que se inclina, convidando o espectador a procurar relações e a completar narrativas fragmentadas. Mas neste caso não há inocência nem mera diversão, há uma fábula encenada entre o esotérico e o profano.
À medida que avançamos, vemos o preto e o branco gradualmente substituídos pela cor. O olhar, ao erguer-se, encontra um corpo repartido: mãos, pernas, pés e cabeça tornam-se objeto de escolha. Mais à frente, no corredor, a cor rompe a rigidez do traço e devolve às formas uma mobilidade latente.
Contudo, é apenas na ala final da galeria que somos verdadeiramente surpreendidos: ali, em estado de clímax, impõe-se diante de nós uma obra que, oculta ao olhar periférico, se destaca não apenas pelo conteúdo, mas também pela sua escala. Três Tristes Tigres suspende o sorriso, tal como a verbalização destas três palavras interrompe a fluidez da fala. O título, retirado de uma lengalenga infantil conhecida por todos, reforça a ambivalência que experienciamos: o jogo da repetição inocente, próprio da infância, confronta-se com a grelha que o compõe, que introduz a sensação de clausura e, simultaneamente, de cena observada à distância. Neste palco cromático, a pele de tigre, força predatória, choca com a vulnerabilidade da figura humana. A força do tigre surge como um poder desejado, mas nunca cumprido, pois devolve sempre o sujeito à sua fragilidade.
Ao regressar à porta pela qual entrámos, encontramos a obra que encerra a exposição: Auto-retrato com máscara. Se antes a fragilidade se insinuava, aqui é anulada. O corpo surge frontal, quase desafiador. A máscara, interrompendo a sua função, revela e reforça uma presença excêntrica e desconcertante. É nesse momento, já de saída, que a questão se impõe: a escolher, que parte de nós escolheríamos? Lembremo-nos, no entanto, que não se trata de uma verdadeira questão. Pois não podemos escolher. Os dois lados pertencem-nos e contaminam-se mutuamente. Somos frágeis e vulneráveis e somos grotescos e profanos ao mesmo tempo. Talvez seja precisamente nessa tentativa de controlo que vive o risível que nos compõe. Resta-nos, tal como Abel Mota o faz, explorar e aguçar a nossa curiosidade sobre o modo como estas duas forças se entrelaçam.
Com curadoria de Frederico Vicente, Bicho de seis cabeças, de Abel Mota, está patente na Galeria Plato, no Porto, até 17 de outubro.