É então que percebe: a obra está ali, mesmo à sua frente. Visível, nítida, através da montra. Os vidros revelam-na por inteiro. Ou quase. Porque o vidro não é apenas uma superfície transparente. É também um espelho, uma membrana e um filtro. Reflete o que acontece do lado daquele que observa e, em simultâneo, permite entrever o que se passa no interior.
Ainda assim, diante da porta, é possível que surja uma dúvida: terá visto realmente a obra? Pode acontecer pensar que não viu a obra apenas porque não entrou no espaço que a guarda, que a expõe. Mas tal hesitação obriga-o a reconsiderar, com alguma ironia, o que significa ver. De facto, que condições são necessárias para que possa afirmar, sem receio, “eu vi”? Será necessário entrar no espaço onde a obra se encontra para que a possa ver? Ou será, por vezes, o próprio ato de entrar que impede ver o que o espaço revela na sua relação com o exterior?
desenho de casa comprida iluminada. com anexo apresenta-se como um conjunto de linhas pretas e planos translúcidos que recortam as paredes brancas da galeria. Fixa na interseção de duas paredes, esta estrutura sugere a planta de uma casa, mas recusa qualquer ilusão de completude. Não se trata de representar uma casa, mas de interromper a sua construção no momento mais elementar: a forma primordial, quase esquelética, de um espaço por vir. Uma base que só ganha espessura no confronto com o que a circunda. Por isso, projeta-se para a rua, para a posição do corpo que a olha de fora. É nestes cruzamentos que a casa de Carlos Nogueira se ergue: entre o dentro e o fora, entre o que está delimitado e o que permanece em aberto, entre o que se infiltra para dentro e o que, de dentro, escapa para o exterior. O que há, aqui, é mais uma condição do que uma construção: a sugestão de um espaço possível, ou o mínimo necessário para que outra coisa possa emergir.
O que importa são os espaços intermédios que se formam entre aquilo que existe, lembra Erpenbeck em Kairos. É neles que esta casa se sustenta. O seu entrelugar ativa-se sobretudo pelo modo como se abre ao exterior: o vidro funciona como membrana entre obra e cidade. Vista do lado de fora, a galeria deixa de ser um espaço de contemplação isolado. O reflexo da rua infiltra-se na obra, contaminando-a com o ruído visual da cidade.
Mas esta relação entre obra e exterior não é estática. Muda com a luz. De noite, a iluminação da galeria acentua o negro da estrutura e realça os planos translúcidos. Não são iluminados como elementos autónomos, mas integrados numa luz que lhes acrescenta espessura. De dia, perde essa densidade e reencontra a cidade no vidro. Não há uma imagem única e fixa: há dois modos de ver e é a hora que decide qual deles se impõe.
Talvez não entrar seja, neste caso, a única forma de ver. E mesmo que regresse apenas para se certificar de que a porta continua fechada, não se irrite: nem todas as entradas de uma casa passam pela porta.
desenho de casa comprida iluminada. com anexo, de Carlos Nogueira, está patente na Galeria de Arquitetura, no Porto, até 27 de setembro.