Foi neste contexto, e ciente do passado destes locais, que visitei os Jardins do Hospital Miguel Bombarda a propósito da exposição coletiva de arte sonora O Ar que Circula, com curadoria de Raquel Castro, que procura formular uma ideia de “pan-acústico” onde o som pode substituir a visão como meio de ligação entre interior e exterior, transformando um espaço outrora de clausura, num local de escuta partilhada e coletiva.
Sabemos que os cuidados de psiquiatria durante o século XIX eram abusivos e altamente coercivos, sendo sobretudo particularmente violentos para com as mulheres, e isto é sentido de imediato ao caminhar-se pelo recinto. Uma intensa soturnidade, feita de edifícios arruinados, grades nas janelas, erva alta movida por sopros invisíveis, bandos de pássaros esvoaçados pelos telhados. Ouço o guia dizer: “66 mil doentes passaram por aqui.” Penso: “como pode o som configurar, aludir, revelar e expandir as intermitências da psique humana? De todas estas pessoas?” A atmosfera é pesada, hipnótica, fantasmagórica. Tento absorver tudo, o guia soa-me agora distante: “Vigilância... Coação... Punição... Redenção.” Paro na última palavra, não encontro nada de redentor aqui. Continuamos a caminhar.
Apesar de existir um forte protocolo no acesso às instalações do hospital – que são propriedade privada, e se encontram em ruínas – é possível espreitar pelas janelas partidas, pelas portas arrombadas, e na escuridão encontrar vestígios, roupas, cadeiras, utensílios, que nos seus silêncios nos petrificam, e exigem uma atenção à história que guardam. Foi ainda diante desta caminhada guiada, segura e protocolar (à qual, confesso, me dava uma vontade de escapar e descobrir melhor este local) que cheguei ao lugar onde se encontrava a instalação. Ainda a meditar sobre a questão retórica, a visita cessara junto ao infame pavilhão de segurança, vulgo panóptico. A instalação encontrava-se aqui.
Diante da austeridade brutal do panóptico, inspirado no modelo de Bentham, integrado num grupo restrito de apenas seis edifícios semelhantes no mundo, e sendo o único com pátio descoberto, observa-se uma arquitetónica de controlo circular que possibilita a vigilância permanente dos presos, tendo outrora uma torre de vigilância no seu centro. De imediato surge a criação site-specific de Tomás Quintais, Ecos Desencontrados #1: Pós-Silêncio? Um conjunto de seis colunas passivas, construídas pelo artista sonoro precisamente tendo por base os bancos do panóptico onde assentam. Sonoridades fantasmagóricas, ecos de clausura, parecem querer manifestar os corpos ausentes, os espíritos que talvez ainda deambulem por este lugar.
Depois, a atenção foca-se nos espaços que se encontram abertos: celas, lavatórios, uma pequena sala de refeições, emitem sonoridades que nos instigam a entrar. Life Entangled: The Secret Story of Shellac, de Yasuhiro Morinaga e Robert Millis, apresenta numa sala escura e mergulhada em tons de vermelho sangue, o que parece ser dois lavabos cobertos por plantas. Através de composições sonoras multicanal, criadas com sons de campo, eletrónica, gramofone e uma voz-off de Claudia Efe, recria-se o mundo vermelho do Kerria Lacca, um pequeno inseto responsável pela produção de goma-laca (Shellac), o principal material usado no fabrico de discos de 78 rpm durante o séc. XX.
Em proximidade, um pequeno cubículo alberga sons cavernosos, ecos rochosos produzidos pela artista sonora Vittoria Assembri, que convoca com Volcanoe’s Noise uma série de explosões sonoras, repousos e dormências, próprios da vida sísmica e vulcânica. Utilizando materiais diversos como hidrofones, magnetofones e rochas piroclásticas, reflete-se sobre a força e a fragilidade da terra. Numa das reentrâncias encontram-se duas antigas e enormes banheiras de pedra, e na entrada seguinte, o mote aquático tem continuidade em Slow Dance, de Inês Tartaruga Água e Xavier Paes, uma composição sonora e audiovisual, onde altifalantes, lanternas, espelhos e vidros transformam a energia sonora em potência luminosa, vibrações aquosas, imagens ondulacionais que surgem mediante o ato de escuta.
Por fim, no espaço que aparenta ter sido a sala de reunião e o refeitório, encontram-se duas instalações de Inês Mendes Leal: Som a Soprar e Fog Horn. A primeira consiste num altifalante de baixa frequência, munido de um cone de ar e cata-vento, onde se procura estabelecer uma relação entre som e vibração de ar, na qual este, através da presença do cata-vento, se torna também visualmente discernível. Fog Horn, por sua vez, faz uso de um gira-discos, monitores de palco e de um loop de uma frequência entendida como sinal de alerta em faróis, para perpetuar uma sensação de receio e ânsia irresoluta.
Apresentada no Panóptico dos Jardins do Hospital Miguel Bombarda e integrada na programação da Lisboa Soa, que decorreu entre 11 e 19 de outubro, a exposição O Ar que Circula foi concebida tendo em atenção as ressonâncias do pavilhão de vigilância, desafiando o silêncio imposto e doutrinário do passado e criando convergências sonoras que instauram um novo diálogo com a presença tão sentida deste lugar.