Se a arte ocidental acolhe a estabilidade de um ícone bizantino, que no alto da Igreja se adequa ao domo para curvar o seu olhar eterno sobre os nossos desvios, ou de um Marat de Jacques-Louis David, morto na banheira para à perenidade despertar, impondo-se marmóreo na inconsistência de nossa memória, ela é também a história do movimento, mais desenvolto na modernidade. Para que Mário Cesariny pudesse desenhar, aos solavancos do elétrico lisboeta, silhuetas tremidas que comentam o nosso incompleto domínio sobre as circunstâncias, antes houve, pelo menos, duas coisas: (1) um Picasso apaixonado pela concisão linear das pinturas de Altamira, que em poucos gestos velozes visava captar a essência de algo, e (2) o transporte equino enfim substituído pelos trilhos — embora tenha Erasmo escrito o seu O Elogio à Loucura no dorso de um cavalo, escapa-me como a cadência do animal teria influenciado a sua prosa. Antes ainda, Ticiano tensionou a beleza ideal do nu grego com o nu terreno, de inúmeros corpos reclinados, contrariando a inocência comovente dos antigos com um erotismo que exibia sua concretude em chaises e camas. Depois, foi Ingres quem alongou a vértebra de sua deitada Odalisca, confirmando assim a máxima de Hogarth: o belo não seria a estabilidade das partes no todo coeso, como previa o cânone grego, mas a linha que serpenteia em hipnótico movimento. No século XX, um jovem Duchamp interessado em sintetizar o dinamismo futurista com a fragmentação cubista acresce tais críticas ao belo estável com o seu Nu Descendo uma Escada, corpo agora desprovido mesmo de anatomia, pois apenas o mapear das sucessões de um movimento. Também enérgicos eram os oblíquos construtivistas, admiradores de máquinas tanto quanto Henry Ford, que colava nas paredes de sua fábrica alguns trechos de Emerson sobre autodeterminação, o mesmo pensador que influenciou o poeta Walt Whitman, em sua visão de um eu em constante expansão com o mundo. Pondero se o medonho êxtase dos revolucionários franceses deu-se não só pelo alvoroço das mudanças sociais, mas também pelos arcos das cabeças que rolavam no cadafalso, como também desenrolavam-se as cascatas de carnes nas pinturas do rococó, ao qual não eram afeitos.
De onde vem este encanto moderno pela energia? Nossa fobia pela fixidez exclui de nossas crenças qualquer desígnio externo ou determinação transcendente — para os construtivistas desmantelarem a geometria em seções divergentes, foi preciso abdicar de deus e da monarquia, da memória e da astrologia, do destino e do apocalipse. Foi preciso que Descartes duvidasse de tudo salvo a si próprio, que os emissários de Robespierre destruíssem a imensa cruz de gemas e ouro feita por Abade Suger e há quase meio milénio mantida na Abadia de St. Denis, que Darwin professasse uma natureza que é a corrida não da preferência prévia, mas da adaptação, e que Einstein dissesse-nos que tudo se move num universo desprovido de centro, onde cada corpo incide no outro. Pois o humano moderno é o indivíduo autodeterminado para o qual nada é sagrado ou alheio aos seus desígnios, cujo maior tesouro é a própria liberdade de pensar e de agir — a existência precede a essência, dizem-nos os existencialistas. E a arte moderna é, mesmo em seus exemplos mais estáveis, como nas pinturas de Mondrian, uma tentativa de ativar o espectador, despertando-lhe o interesse em agir na modernidade.
A obra de Vieira da Silva contempla tanto o ímpeto lógico de estruturar o ambiente que antes nos determinava quanto os rompantes expressivos que se impõem ao nosso espírito e vêm banhar-nos em sentimentos desconcertantes, quando permitida a liberdade de viver autenticamente. Na modernidade, o indivíduo é também o seu maior problema, pois se por um lado se assegura de sua força e lucidez, por outro utiliza-as para conhecer as suas próprias limitações e a natureza enigmática de sua existência. São estas duas forças que constroem as pinturas de Vieira da Silva. Seu brilhantismo é não resolver os contrastes, preferindo explicitá-los em suas tensões. A tudo acolhe, sem nada reduzir — melhor que simplificar a exuberância de nossa experiência, é estruturar a sua complexidade.
A mostra Vieira da Silva: Pintura em Movimento participa deste recente entusiasmo pela experiência imersiva, atividade residual do processo de aceleração do nosso cotidiano. Se a arte moderna buscava novas formas que ativassem a consciência do espectador, tais experiências utilizam uma imposição de estímulos visuais e sonoros para realizar o oposto — pensam por nós, terceirizando a experiência. A mostra imaginava, por mim, uma suposta movimentação das obras de Vieira da Silva, artista cujas pinturas visavam estimular uma movimentação mental autónoma. Mesmo que fosse uma exposição dedicada à infância, é como se não confiasse o bastante na qualidade das obras originais, supostamente demasiado sisudas para o interesse das crianças, preferindo apelar a artifícios visuais mais palatáveis a um público acostumado à conveniência máxima de todos os serviços. Se a boa obra infantil é destinada à criança presente em todos nós, também a adulta é destinada, quem sabe, à maturidade presente nas crianças. É importante, ao incentivar o deslumbre infantil, não alimentar a preguiça adulta. A cultura de massas e a propaganda, ao invés de nos ativar ao desenvolvimento, preferem impor-se ao espectador passivo. Acostumaram-nos, portanto, a um assalto de estímulos que reduzem as nossas sensibilidade e atenção, fomentando um cotidiano determinado pela conveniência. Elucidativo que o vídeo da mostra esteja num loop carente de pausas — a imposição do estímulo enlaça-nos num entretenimento sem fim.
Inúmeras obras exploram, desde a década de 1920, a tecnologia do filme, como Anémic Cinéma, de Duchamp, ou Ballet Mécanique, de Murphy e Léger. Mais tais obras são exercícios autorais, originados de dentro das características do género, interrogando as suas possibilidades e despertando no espectador novos regimes mentais, enquanto que a mostra Pintura em Movimento se propõe, sob o argumento de promover a obra de Vieira da Silva, a destacar elementos de suas pinturas para arranjá-los em novas composições e ritmos, sobrepondo-lhes um temperamento alheio à própria artista. Sendo assim, a mostra nem fornece um novo entendimento de sua obra, nem se sustenta como construção autoral. “Porque as pinturas são silenciosas e estáticas, a maneira mais óbvia de manipulá-las é usando movimento e som”, diz-nos John Berger.[1] Peter Greenaway tece uma crítica similar ao cinema como um todo, dizendo que os cineastas costumam limitar-se a filmar literatura, ao invés de repensar o próprio conceito de história mediante as possibilidades do filme — o que a vídeo arte se propõe a fazer, nas palavras de Hans Richter: “descobri que a forma abstrata, em filme, não é o mesmo que na pintura, onde é a expressão máxima de uma longa tradição, enquanto o filme deve ser descoberto em suas próprias propriedades”.[2]
Diversos artistas, já no século XIX, vinculavam a prática artística ao desenvolvimento tecnológico para se afastarem do que entendiam ser a contemplação passiva dos museus em prol de uma arte útil realizada em móveis e utensílios, na arquitetura doméstica e no planejamento urbano. A questão, no entanto, não se trata das diferenças entre galerias e praças, indústria e artesanato, contemplação e exercício, mas sobretudo da necessidade de ramificar a experiência artística, que quando bem construída, é sempre um estado de atividade íntima — a distinção entre uma iluminura medieval e uma cadeira da Bauhaus é que, supunha-se, o móvel fomentaria também o corpo do indivíduo moderno, para o qual agir e pensar seriam parte do mesmo processo. A arte, portanto, não nos fornece uma fuga entretida, mas um encontro transformador. A quietude da tinta na tela não diminui, mas acentua o dinamismo de certas obras — não manifesta, mas antes sugere um movimento que o espectador articulará mediante as suas próprias possibilidades, tendo por sua vez também a sua própria cognição transformada pelo impacto da imagem percebida. A obra assim expande-se no registro do regime aberto, pois depende do espectador. Tal contido dinamismo foi explorado por inúmeros artistas modernos, como Vieira da Silva, pois interessados na apreensão imaginativa da percepção humana.
Movimentos como a Bauhaus, por exemplo, facilitavam o contacto com a arte, mas sempre através de novas obras. Não tencionavam multiplicar as pinturas de Rembrandt ou as esculturas de Bernini, mas construir outros modelos artísticos. Pois a simples reprodução técnica de pinturas, escreve Walter Benjamin, remove das obras a sua aura. Se para vivenciar uma obra era antes preciso deslocar-se ao lugar por ela inaugurado, agora as imagens das obras assaltam-nos a cada instante e em qualquer lugar, reduzindo-as a meros objetos manipulados sem compromisso com a sua integridade. O espírito moderno, intransigente a tudo o que escapa ao domínio humano, acabou por infantilizar as alteridades. Pergunto-me se o papel dos museus não seria, também, popularizar a obra sem remover a sua reverência, fazendo da peregrinação uma atividade recorrente no cotidiano de seu público.
Vieira da Silva: Pintura em Movimento é a primeira exposição imersiva em Portugal dedicada à obra de um artista português. O músico e compositor Rodrigo Leão assina a banda sonora original, especialmente criada para esta animação da pintura de Maria Helena Vieira da Silva. A exposição está patente na Fundação Arpad Szenes—Vieira da Silva até dia 31 de dezembro.
[1] Berger, John. Ways of Seeing, ep. 1.