Entre risos nervosos, fomos tentados a quebrar as regras e, no silêncio – esse sinal de que estamos sós –, quase cedemos à tentação de substituir o toque pelo visor do telemóvel. Resistimos. E, enquanto descíamos, acompanhados pelo som que assinalava o alarme e a vigília, o espaço acendia-se e apagava-se em lampejos vermelhos (nunca claros o bastante para revelar o espaço por inteiro, mas fortes o suficiente para agudizar a nossa apreensão). No final, o corpo que entrara receoso saía vitorioso, reconciliado com a travessia.
E essa entrada resumia a proposta de Serralves: um encontro com o que nos é desconfortável, incómodo, por vezes entediante, mas também harmonioso e espirituoso. Um museu que se impõe como um locus onde o pensar ainda se faz sem o intermédio da palavra. Um espaço onde a experiência não chegou a organizar-se em conceitos. Um estado inaugural, anterior à interpretação — talvez o instante em que o sentir ainda não se traduziu em discurso. Um território de gestos, sons e ritmos onde o corpo procura a forma de dizer o que o atravessa. Um pensar que se faz pela carne, carne viva, que por instantes ainda não se fixou em termos nem em significados, e por isso se exprime no balbucio, na hesitação. Pensar é a concretização, a materialização do que se pré-pensou, diz-nos Clarice Lispector. Aqui, sentiu-se antes de qualquer coisa significar: a consciência foi substituída por uma atenção física, quase animal. Viver é fruir, recorda-nos Lispector; mas a fruição, neste contexto, fugia ao conceito: não era racional, era quase virgem. Fruir era habitar o hiato entre o sentir e o compreender, aceitar que o sentido só chega depois, quando já não estamos no lugar.
Posso pisar o tapete de Nour Mobarak? Ouvi, ao longe, alguém perguntar. Engraçado: essa pessoa, sem o saber, lia-me o pensamento. De facto, se não estivéssemos em Serralves, ninguém hesitaria. Um tapete serve para ser pisado. Protege do frio, da humidade, dos escorregões inevitáveis em dias de chuva, como o foi o de 19 de outubro, e acolhe o corpo. Mas ali, esse gesto ganhava outro peso. Sabíamos onde estávamos e esse saber regula o corpo: define a distância, mede a ousadia e suspende o impulso. Aquele tapete tinha um nome e um nome muda tudo. Tornado obra, impõe-se como uma peça frágil, vulnerável, quase sagrada. Hesitávamos, não por prudência, mas por receio de o contaminar. Sabemos que os dias de chuva trazem consigo terra, e que essa terra se transforma em lama, colando-se aos nossos sapatos como uma lapa persistente. Por isso, antes de avançar, perguntávamo-nos: não poderiam eles danificá-lo? Aquele tapete, tecido manualmente em Beiriz, medindo sete metros por sete, era demasiado grande para ser apenas objeto, demasiado nobre para ser apenas chão. Sob ele, uma instalação sonora convocava uma memória pessoal da artista. A gravação que ouvíamos não era pura. Resultado de diferentes processos de manipulação, o seu som mostrava que a memória é uma construção, uma forma de reconfigurar o já vivido, de recompor lugares, objetos e imagens. A memória é feita de várias histórias que contamos a nós mesmos. Aquela era-nos contada, e nela entrávamos pela reverberação do que nos sustentava: os pés. A pergunta inicial não era prática: sussurrava a culpa e o desconforto de um corpo que não sabe estar.
Hybrid #1, de Andreas Trobollowitsch, teve lugar na garagem do museu, no dia 18 de outubro. Às 17 horas (uma hora de transição em termos de luz), a diferença entre os corpos enlaçou-se num objetivo comum: descer ao subsolo do museu e permanecer num lugar reservado ao trânsito e à passagem. Para muitos, esse descer correspondia à materialização de uma experiência inaugural – a primeira vez naquele espaço. Frente a frente, várias cadeiras estavam dispostas e, entre elas, podíamos ver gira-discos mecânicos, flautas e balões. O som que se ouvia das flautas resultava do ar expelido pelos balões cuja rotação era garantida pelos gira-discos. A acompanhar, estavam os membros do coro, cada um sentado na sua cadeira. A sua figura, quase imóvel, impunha-se pela vibração mínima da boca que o som denunciava. A voz, quase ausente do gesto, misturava-se com o sopro das flautas. Encontrávamo-nos diante de um cenário monocromático: o branco dos balões e o preto das roupas desenhavam o contraste entre o visível e o audível. O som, delicado e rarefeito, não preenchia o espaço, modelava-o. Parecia nascer do ar e regressar a ele, como uma respiração cuja origem não nos era possível discernir. Um espaço de ressonância, um intervalo. E talvez a única pergunta que nos tenha restado, quando, após o término, o eco abafado regressou e o ruído reapareceu, seja: teríamos estado, por instantes, no céu?
Às 18h30 do dia 19 de outubro, o som regressou em estado de alarme com Tiran Willemse e Melika Ngombe Kolongo. As mãos do artista moviam-se num ritmo febril e o som era intempestivo, uma vibração que, pontualmente, nos atingia antes de qualquer pensamento. Instintivamente, levávamos as mãos aos ouvidos, um gesto de defesa, de contenção, de medo. O movimento descontrolado e imprevisível por parte do artista evidenciava a impossibilidade de o espectador permanecer neutro. Participar ou interromper? A hesitação era também o tema: onde permanecer? Diante daquele corpo que saltava, como se sob os seus pés estivesse um trampolim, e se lançava contra as paredes, surgia a interrogação que atravessava toda a performance: estaríamos a experienciar a loucura ou apenas o limite do sensível num ambiente controlado? O termo, sentido, por enquanto, escapava-nos como se de novo estivéssemos no escuro.
A 11ª edição do Museu como Performance teve lugar em Serralves nos dias 18 e 19 de outubro e dele saímos em silêncio, como quem esqueceu a língua.