article
Pós-Museu: “A” de Ausência, no Museu Nacional de Etnologia
DATA
23 Jun 2025
PARTILHAR
AUTOR
João Pedro Soares
Diante do ano da comemoração dos cinquenta anos da independência das quatro ex-colónias portuguesas – Angola, Cabo Verde, Moçambique e São Tomé e Príncipe – a exposição 'Pós-Museu: “A” de Ausência', com curadoria de Sandra Vieira Jürgens, viu reunidas obras da Coleção de Arte Contemporânea do Estado no Museu Nacional de Etnologia.
Numa exposição eclética que reúne diferentes mediums, entre pintura, escultura, arquivo, e vídeo-instalação, prima por articular de forma arguta um diálogo entre artistas contemporâneos acerca de memória coletiva, diáspora, opressão, libertação, e os processos históricos decorrentes de uma política cultural decolonial.
A curadoria contempla a premissa base do “pós-museu”, termo da politóloga Françoise Vergès no seu livro Decolonizar o Museu, que desafia o pensamento museológico a uma abertura a culturas historicamente marginalizadas, oferecendo um espaço de resistência e diversidade, que conteste a narrativa eurocêntrica dominante. Se o antigo museu configura um espaço herdeiro de expropriações coloniais, o pós-museu reconfigura e problematiza esse mesmo movimento expropriativo, honrando as novas lutas por identidades culturais e novas formas de representatividade. A propósito disto, Edward Said, reputado académico, crítico literário, e ativista palestiniano, no post-scriptum de Orientalismo publicado em 1978, escrevia que “[…] a história humana é feita por seres humanos. Uma vez que a luta pelo controlo do território é parte dessa história, também a luta pelo sentido histórico e social o é.”1
Em Pós-Museu: “A” de Ausência, verificou-se que o trabalho dos vinte e quatro artistas convidados destaca, precisamente, novas lutas por emancipações e reparações histórico-sociais que repensem o trajeto das grandes narrativas da humanidade num outro ângulo, que devolvam uma justiça cívica, social e cultural, que repare – naquilo que é possível ainda ser reparado – os séculos de expropriação colonial. A reapropriação e contestação do arquivo colonial é um dos temas mais prementes na exposição, onde as obras de Catarina Simão (nos vídeos Ntimbe Caetano (2016) e Effects of Wording (2014), ambas da série “The Mozambique Archive”), de Daniel Barroca (na fotografia Mapa de Cumplicidades #2 (2011)), e de Vasco Araújo (no arquivo de madeira pintada Memória Infinita (2016)) denunciam o terror e o trauma do processo de descolonização. Também se verifica um sagaz questionamento dos cânones clássicos da história de arte, fortemente eurocêntricos, presentes na série Tomorrow is another day de Mónica de Miranda, que revela um estudo da figura humana feito numa escola em Kinshasa, na República Democrática do Congo, aludindo paralelamente aos perturbadores estudos e medições etnográficos feitos nesta região durante o período colonial.
Mas nem tudo se centra nos horrores coloniais. Através da pintura abstrata de Nikias Skapinakis (The African Queen (1990)), no retrato familiar de René Tavares (Novo estilo de vida no quintal da antiga roça (2024)), no simbolismo onírico dos quadros de Joaquim Rodrigo (Sevilha – Cartaia (1969) e Paris – Orio (1972), e na arte visual de Grada Kilomba (Heroines, Birds and Monsters series, Triptych 2, Sphinx (2020)) oferece-se uma outra perspetiva pictórica que ora retrata diretamente os quotidianos, os valores, e a tradição oral da africanidade, ora se influencia pelo perspetivismo de culturas antigas não-ocidentais. A importante influência diaspórica não fica esquecida, diante da caixa de transporte criada por Carlos Bunga (Crate Painting (2019)) imagina-se a experiência das migrações, do nomadismo, e extrapola-se a influência da afrodescendência em Portugal.
Se existe um “a” de ausência na exposição, é precisamente na ausência do velho e antiquado discurso museológico que insiste em preservar uma herança colonial cuja miopia seletiva impede de compreender que, por vezes, o que expõe provém de um despojamento de outra cultura. Pelo contrário, nesta exposição assumem-se os despojos de um legado imperialista e colonialista, estendendo o convite à importante reinterpretação (quiçá reescrita) de uma narrativa histórica que deixou à margem uma série de corpos, géneros, culturas, e perspetivas, sucumbidas às grandes missivas e propagandas do processo colonial eurocêntrico.
Inaugurada em 11 de abril e patente até 13 de julho no Museu Nacional de Etnologia, com visitas orientadas (às 17 horas) e conversas (às 18 horas) nos dias 17 de maio e 26 de junho, é uma visita essencial para aqueles que se interessam por questões pós-coloniais, ou simplesmente queiram conhecer mais sobre o legado da africanidade, do sul global, e de alguns dos mais destacados artistas contemporâneos a trabalhar estas temáticas.

1 Said, Edward. 1978. Orientalismo, edições Cotovia. Pág.395.
BIOGRAFIA
João Pedro Soares (Almada, 1995) é cineasta, investigador e escritor. Licenciado em Artes e Humanidades pela Universidade de Lisboa, fez mestrado em Argumento e Realização na ESTC. O seu trabalho abrange cinema, fotografia e escrita, com foco nas relações entre humano-natureza, ecologia, futuros regenerativos e na interseção entre arte e agricultura. É doutorando em Estudos Artísticos na NOVA FCSH, com investigação sobre ecologia no cinema documental português contemporâneo. Realizou as curtas-metragens premiadas “Retrato de um homem enquanto ilha” (Prémio Novos Talentos Fnac 2021) e “A Incessante Conquista da Escuridão”, ambas exibidas em grandes festivais. Publicou ensaios, contos e poesia.
LINKS UMBIGOLAB
PUBLICIDADE
Anterior
article
Festival "Fim do Mundo" em São Tomé e Príncipe
20 Jun 2025
Festival "Fim do Mundo" em São Tomé e Príncipe
Por Ricardo Barbosa Vicente
Próximo
article
Escrever a Sua Própria História
24 Jun 2025
Escrever a Sua Própria História
Por Joerg Bader