a minha memória transborda
pelos meus dias
e, como um balão, ocupa
todo o universo
porque comeu flores e
comprimidos
não está cá esta noite
mas num campo de
flores brancas
plantada, como elas,
no solo, no calor.
(Etel Adnan, The Spring Flowers Own & The Manifestations of the Voyage, trad. livre)
A artista e poeta libanesa-americana esteve sempre em exílio, onde quer que fosse, procurando incessantemente uma continuidade tão fragmentada quanto ela própria. Tendo crescido a falar várias línguas e longe da sua terra natal, destruída durante a Guerra Civil Libanesa, Adnan viveu vestígios doces e dissonantes do passado, suspensos entre a nostalgia e a luz.
As We Fade (Enquanto Desvanecemos), a exposição individual de Saodat Ismailova na Kunsthalle Lissabon, move-se nos mesmos limites: entre a presença e a ausência, entre o efémero e o duradouro. A peça principal, que ocupa grande parte do espaço, é uma instalação de vídeo de dois canais também intitulade de As We Fade (2024), que acolhe o espectador na escuridão com um ritmo subtil e tranquilo. Ao entrar na Kunsthalle, somos absorvidos por uma sequência de painéis de seda suspensos: uma arquitetura efémera e flutuante que transforma a contemplação numa viagem, numa passagem.
No vídeo, a artista explora a Montanha Sulaiman-Too, um dos mais antigos locais de peregrinação da Ásia Central, situado em Osh, no Quirguistão. A montanha sagrada, venerada há mais de mil anos, mesmo em tempos pré-islâmicos, e um ponto crucial na Rota da Seda, sofreu alterações violentas durante o regime soviético, que procurou alterar o seu significado espiritual ao transformar uma das suas cavernas piedosas num restaurante modernista, mais tarde convertido num museu.
Os vinte e quatro painéis de seda, um por fotograma por segundo, tornam a projeção fluida, filtrada, viva. Tal como as próprias memórias, as imagens aparecem e desaparecem, dissolvem-se e regressam. O tecido move-se com a passagem do público, enquanto o vento e a luz modulam a sua presença. A seda, artesanato antigo de Margilan, no Uzbequistão, onde nasceu a artista, liga a obra a uma história material e sensorial: o passado como um tecido frágil, em constante reescrita. A projeção, que desaparece de um lado apenas para reaparecer do outro, revela um paradoxo mais profundo: o resquício da história como desaparecimento e retorno, perda e resistência, sobrevivência. As imagens, fluidas e em camadas, evocam um legado comum que não é preservado, mas transmitido, transportado através de gestos, vozes e rituais.
Tendo vivido a infância na União Soviética durante a Perestroika, uma época de colapso e redefinição dos valores culturais, Ismailova reflete aqui sobre o destino dos lugares sagrados e das comunidades que os habitam, nas identidades mutáveis e em evolução desses territórios marcados por fronteiras políticas e geográficas. Tal como Etel Adnan, também ela vem de um lugar marcado por memórias fragmentadas e uma geografia poética complexa, onde a paisagem é simultaneamente guardiã do passado e testemunha do esquecimento. Ambas transformam a ausência em presença, almejando uma linguagem para além do arquivo, uma forma de conhecimento que não é escrita, mas concedida. No seu trabalho, o que fica para trás não é um monumento, mas um eco, não é permanência, mas passagem. Os vestígios não são a memória do que um dia foi, mas a continuidade do que ainda permanece: uma geografia afetiva e espiritual. Tudo desvanece, mas nada desaparece verdadeiramente.
A exposição As We Fade poderá ser visitada até dia 22 de novembro de 2025.