Com curadoria de Flávia Frigeri, Anatomy of Space reúne aproximadamente 70 obras de Maria Helena Vieira da Silva, numa tentativa de esquematizar cronologicamente a evolução da sua linguagem pictórica - sempre permeável ao seu próprio tempo, mas nunca inteiramente absorvida pelas suas referências. A abstração, conta-nos a curadora, foi para Vieira da Silva uma decisão consciente, um percurso traçado a um ritmo próprio. E é precisamente no esclarecimento da maturação da sua linguagem artística, operado por via das várias decisões curatoriais, que reside uma parte substancial desta exposição retrospetiva. Por isso, o texto que escrevo terá uma inevitável tónica na sequência narrativa da exposição.
Comecemos, então, pelo princípio, que é por onde - ouvi dizer - se devem começar as coisas. Entramos na exposição e somos recebidos por um primeiro núcleo expositivo dedicado à apresentação da artista e à contextualização do seu trabalho. Aqui, encontramos Vieira da Silva retratada por si própria, em Autoportrait (1930), e pelo seu marido Arpad Szenes, em Portrait de Marie Hélène (1940). Vemo-la envolta no seu processo criativo - lento e meticuloso, quase cirúrgico - e observamos também o interior do seu atelier, que era simultaneamente um espaço de trabalho e um motivo recorrente nas suas telas. Mas é na fotografia de Denise Colomb (Maria Helena Vieira da Silva in the Studio, 1948), que ocupa uma parede de destaque no espaço expositivo, que o mote para a exposição parece ser lançado. A imagem mostra-nos a artista no seu estúdio em Paris, rodeada dos seus livros, objetos e de algumas pinturas ainda incompletas. Com inúmeras camadas que se sobrepõem, a fotografia apresenta a artista multiplicada e projetada sobre o espaço do atelier. São vários os espectros de Vieira da Silva que aqui encontramos. E é significativo que a primeira imagem da exposição nos mostre essas várias versões da artista. Porque, em última instância, o que a exposição propõe é justamente revelar as múltiplas camadas conceptuais e formais que vão compondo a sua linguagem artística.
Mas que camadas serão estas? Um segundo núcleo expositivo explora um primeiro entendimento de Vieira da Silva sobre o espaço e a abstração. Em La Chambre à carreaux (1935), por exemplo, vemos um quarto formado por quadrados e losangos que sugerem uma composição rítmica de cores. A peça, que remete para uma fase inicial da sua carreira, introduz aquelas que viriam a ser as linhas condutoras do seu trabalho. Revelam-se os jogos de perspetiva e de cor ao serviço da representação do espaço e também a influência da tradição decorativa portuguesa com a utilização do azulejo como um módulo construtor. Por sua vez, Marseille Blanc (1931) marca o momento em que a artista se interessou pela geometria escondida no tecido urbano - essas linhas e construções geométricas que, de forma tão singela, captam o essencial do espaço. Recupero, então, aquilo que havia anteriormente escrito a propósito da exposição Alinhavando o Espaço, de Fred Sandback. À data, o texto que escrevi versava sobre uma série de construções lineares expostas - esculturas que, dentro dos limites do possível, foram destituídas do seu peso e massa. Relembro as salas da exposição quase vazias, com fios que atravessavam, cruzavam e organizavam o espaço, e reencontro esse mesmo exercício cartográfico em Anatomy of Space. Interessada no mapeamento do espaço, e na sua redução a uma estrutura anatómica - as linhas, os planos e as perspetivas -, Vieira da Silva veio também alinhavar o espaço. Este exercício cartográfico torna-se particularmente manifesto no núcleo expositivo Cities: Real and Imagined, onde se reúnem muitos dos seus trabalhos sobre a estrutura e o esqueleto do espaço. A este propósito parece pertinente lembrar que Vieira da Silva frequentou algumas aulas de anatomia na Faculdade de Belas-Artes de Lisboa. Contrariamente ao que seria expectável, estas aulas não contribuíram para um aperfeiçoamento da sua técnica figurativa; mas traçaram um caminho para a abstração, que viria a revelar-se na forma como a artista representava os centros urbanos. Por vezes, as suas telas remetem-nos para as cidades que marcaram o seu imaginário pessoal. Vemos as luzes quentes de Paris refletidas sobre o rio Sena; os tons azulados e as formas triangulares que nos lembram as gôndolas de Veneza; e os edifícios empilhados nas encostas das colinas de Lisboa. Vemos tudo isto e, no entanto, não resta nada além da nossa intuição que nos permita confirmar o que vemos. Outras vezes, as suas pinturas mostram-nos cidades mais que (as) existentes: lugares outros, fora do tempo e do espaço, que condensam em si observações e detalhes que ressoam em todas as outras cidades. No Livro do Desassossego, Fernando Pessoa escreve: O que no Elevador de Santa Justa há de universal é a mecânica facilitando o mundo. O que na Catedral de Reims é verdade não é a catedral nem o Reims, mas a majestade religiosa dos edifícios consagrados ao conhecimento da profundeza da alma humana (p.134). Diz-nos ainda que há na nossa experiência da Terra duas coisas somente: o universal e o particular. Descrever o universal é descrever o comum a toda a alma e a toda a experiência humana. Descrever o universal das cidades é, pois, servir-se do que é comum à nossa experiência para que se possam tecer impressões abstratas do espaço.
Em Vieira da Silva, destacam-se os sentimentos de alienação e de confusão: um sentido de desorientação que trespassa as suas construções labirínticas. Na peça La Ville Tentaculaire (1954), por exemplo, a cidade é representada como um organismo tentacular que nos envolve. As linhas vertiginosas, que cortam a tela como fissuras ou feridas no tecido da cidade, parecem prenúncios de um colapso iminente. E as formas labirínticas, por onde o olhar se perde, revelam-nos um sistema tão destrutivo e encriptado quanto envolvente. O mesmo se aplica às suas representações de espaços interiores e exteriores, onde os ambientes de transição — os hallways, as escadas, os corredores — sugerem a fragilidade do próprio tecido urbano. Há nestas construções geométricas a eminência de um abismo, mas sobretudo a sensação de que o espaço urbano está em constante mutação, ameaçando desaparecer ou desintegrar-se. São estas, afinal, as impressões universais de uma cidade e é impressionante que, por mais fragmentada ou abstrata que seja, a pintura de Vieira da Silva seja suficiente para provocar em nós um sentimento de imersão numa realidade urbana.
Se Cities: Real and Imagined remete para o entendimento da artista sobre o espaço, Checkers, Dancers and Chess Players evidencia o seu trabalho sobre o movimento. Neste núcleo - onde se reúnem algumas das suas obras mais notáveis - os espaços representados são, sobretudo, espaços em movimento. Nas obras incluídas neste conjunto, surgem figuras que se tornam parte integrante da arquitetura: são elas que ativam o espaço e que, com ele, se deslocam, distorcem e vibram. Em Ballet ou Les Arlequins (1946), por exemplo, vemos alguns arlequins que parecem dançar, arrastando consigo os azulejos que compõem o fundo. Por sua vez, Danse (1936) e Les Grilles em Émeutes (1939) mostram-nos alguns vultos que se movem sobre uma grelha geométrica. Note-se como estas telas revelam o movimento das figuras impresso na ondulação dos azulejos, e como essa dinâmica introduz também uma dimensão temporal subtil, ainda que inscrita na própria construção da imagem.
Neste contexto, a curadora da exposição sugere que, nascida noutro contexto, Maria Helena Vieira da Silva teria encontrado no cinema e na imagem em movimento um meio para a sua prática artística. Afinal, se o cinema é sobretudo espaço e tempo, a artista demonstra não apenas uma mestria na construção espacial, mas também uma capacidade singular de sugerir, através da manipulação da perspetiva, a coexistência de vários tempos no mesmo espaço pictórico. Em O exercício experimental da liberdade, Delfim Sardo (2017) descreve os erros perspetivísticos como “compactações de temporalidades diferidas”, isto é, como uma forma de introduzir o tempo enquanto matéria primordial da experiência visual. Segundo o autor, o erro de perspetiva fragmenta a linearidade temporal, criando uma distensão que permite a coexistência de vários tempos no mesmo espaço pictórico. A recusa da coerência óptica cartesiana não é, portanto, uma falha técnica, mas um gesto deliberado que abre uma fissura na lógica tradicional da representação. É precisamente este o gesto operado por Vieira da Silva. Ao condensar múltiplos ângulos de observação num único espaço pictórico, a artista comprime diferentes momentos num só instante visual. Mas o seu trabalho sobre o tempo não se esgota na manipulação da perspectiva: emerge também na circulação e na repetição das figuras, na elaboração de uma coreografia que pontua as suas telas, e na construção de estruturas intrincadas sobre as quais o olhar do espectador se demora.
O tempo das telas de Vieira da Silva é, sobretudo, o tempo que sobre elas demoramos o nosso olhar (Her pictures no longer empty themselves at one single instant, but play themselves at their own speed, the eye being carefully directed through the intricacies of their elaborated structure). As suas pinturas, vimos já, tornaram-se progressivamente mais complexas e mais demoradas. Se no início da sua carreira persiste alguma figuração, no final surgem grelhas labirínticas cada vez mais densas. De qualquer modo, há uma reflexão sobre a anatomia da nossa experiência - indiscutivelmente ancorada no tempo e no espaço - que atravessa todo o seu percurso artístico. Talvez por isso Anatomy of Space se feche com um núcleo que reúne uma série de telas em torno da cor branca. Encerrar com o branco - esse elemento repetido nas suas telas - não apenas evidencia a evolução do entendimento da artista sobre a abstração, mas sugere também um retorno a uma espécie de unidade a(na)tómica da matéria pictórica, espelhando aquele que foi, na verdade, o trabalho de Vieira da Silva ao longo das décadas.
A UMBIGO viajou até à cidade basca a convite do Museu Guggenheim Bilbao.